Como seria uma cidade
sem poetas? Seria um condado anestesiado, com monólitos imensos e blocos de
vida amorfa. As pessoas teriam gosto de farinha de milho estragada na boca, e a
pele seria pesada e adoecida por falta de sol e brisa. Teríamos pilhas de papéis
cheirando a mofado, contendo a lista infinita dos conceitos possíveis. O
estatuto ontológico do ser, o princípio de razão suficiente, a natureza essente
das coisas do mundo… Tudo isso teríamos em dispositivos fabulosos, hábeis na
produção do cerco à vida… Mas o mundo mesmo, as coisas e o ganido forte do que
é vivo, isso não caberia numa cidade-sem-poetas. Uma cidade sem poetas nem
mesmo um nome teria! E todos os dias seriam o mesmo dia e todas as horas
apenas mortificações em 60 minutos. Os sinos das igrejas parariam de trabalhar
e os anjos-meninos, escondidos nas nuvens de chuva, marchariam em retirada. As
nuvens e a chuva fariam o mesmo. Os encontros entre amigos (de fato, é apenas
uma suposição essa coisa de amigos numa cidade como esta) seriam sinistras
emplastificações de sorrisos, reconhecidos por códigos de série colados no
molar esquerdo, e nem com o mais potente instrumento de auscultação o coração
de tais homens e mulheres deixar-se-ia perceber. As pessoas seriam como
máquinas de vender coca-cola: uma moeda e um botão; e as crianças conversariam
sobre o câmbio e as taxas reguladoras da política de redução dos recolhimentos
compulsórios sobre os depósitos bancários. As aquarelas e o arco-íris teriam
uma cor apenas, e poder-se-ia, finalmente, banhar-se duas vezes em um mesmo
rio. As moças comprariam seus príncipes em doze vezes, na mesma loja onde suas
mães lhes compraram há alguns anos o sonho desse mesmo príncipe. Nos circos os
palhaços teriam o rosto limpo, havendo a hora certa para rir, indicada no
catálogo da programação do espetáculo vendido junto ao ingresso. Ouso
dizer ainda que, nessa cidade, as avós fariam apenas miojo para o almoço de
domingo e que o único vestígio de música seria o som dos pés nas ranhuras do
asfalto quente e insondável das ruas. Nem me atrevo a falar do amor, pois sem
poetas, ele seria um deslocamento constrangido e, não tendo a quem inspirar,
logo sucumbiria num frêmito exangue de solidão. Numa cidade sem poetas seria
barata, prática e segura a ordem instaurada da monotonia, com seus cálculos
infinitesimais sobre seres de finitude. Então, não se leria Rimbaud,
Pessoa, Quintana, ou João Cabral… e desse modo, nunca a eternidade no mar
misturado ao sol, nunca o humano em demasia nas portas da Tabacaria, nunca a
salvação por letras de um afogado, nunca um Severino entreaberto com a ponta de
dedos aguerridos… nunca um arriscado gole na sede do estranhamento que é ser…
pois poetas não haveria e nem tristeza ou alegria, apenas o fato cru –
empobrecido, biológico, redundante.
Ângela Calou
é escritora. Autora do livro “Eu tenho medo do Górki e outros contos”, 2011.
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