sexta-feira, 18 de outubro de 2013

“Que mania é essa de expulsar o pobre poeta da cidade, Platão?”, crônica de Ângela Calou (18.10)


Como seria uma cidade sem poetas? Seria um condado anestesiado, com monólitos imensos e blocos de vida amorfa. As pessoas teriam gosto de farinha de milho estragada na boca, e a pele seria pesada e adoecida por falta de sol e brisa. Teríamos pilhas de papéis cheirando a mofado, contendo a lista infinita dos conceitos possíveis. O estatuto ontológico do ser, o princípio de razão suficiente, a natureza essente das coisas do mundo… Tudo isso teríamos em dispositivos fabulosos, hábeis na produção do cerco à vida… Mas o mundo mesmo, as coisas e o ganido forte do que é vivo, isso não caberia numa cidade-sem-poetas. Uma cidade sem poetas nem mesmo um nome teria! E todos os dias seriam o mesmo dia e todas as horas apenas mortificações em 60 minutos. Os sinos das igrejas parariam de trabalhar e os anjos-meninos, escondidos nas nuvens de chuva, marchariam em retirada. As nuvens e a chuva fariam o mesmo. Os encontros entre amigos (de fato, é apenas uma suposição essa coisa de amigos numa cidade como esta) seriam sinistras emplastificações de sorrisos, reconhecidos por códigos de série colados no molar esquerdo, e nem com o mais potente instrumento de auscultação o coração de tais homens e mulheres deixar-se-ia perceber. As pessoas seriam como máquinas de vender coca-cola: uma moeda e um botão; e as crianças conversariam sobre o câmbio e as taxas reguladoras da política de redução dos recolhimentos compulsórios sobre os depósitos bancários. As aquarelas e o arco-íris teriam uma cor apenas, e poder-se-ia, finalmente, banhar-se duas vezes em um mesmo rio. As moças comprariam seus príncipes em doze vezes, na mesma loja onde suas mães lhes compraram há alguns anos o sonho desse mesmo príncipe. Nos circos os palhaços teriam o rosto limpo, havendo a hora certa para rir, indicada no catálogo da programação do espetáculo vendido junto ao ingresso. Ouso dizer ainda que, nessa cidade, as avós fariam apenas miojo para o almoço de domingo e que o único vestígio de música seria o som dos pés nas ranhuras do asfalto quente e insondável das ruas. Nem me atrevo a falar do amor, pois sem poetas, ele seria um deslocamento constrangido e, não tendo a quem inspirar, logo sucumbiria num frêmito exangue de solidão. Numa cidade sem poetas seria barata, prática e segura a ordem instaurada da monotonia, com seus cálculos infinitesimais sobre seres de finitude. Então, não se leria Rimbaud, Pessoa, Quintana, ou João Cabral… e desse modo, nunca a eternidade no mar misturado ao sol, nunca o humano em demasia nas portas da Tabacaria, nunca a salvação por letras de um afogado, nunca um Severino entreaberto com a ponta de dedos aguerridos… nunca um arriscado gole na sede do estranhamento que é ser… pois poetas não haveria e nem tristeza ou alegria, apenas o fato cru – empobrecido, biológico, redundante.

Ângela Calou é escritora. Autora do livro “Eu tenho medo do Górki e outros contos”, 2011.

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