30 de dezembro de 2012.
Dias há, recluso em minha egocrise de todos os anos, buscava na clausura e na solidão
de roer as unhas do ano findouro, o sentido para a existência. Cansado de
assistir a massacres infantis no mundo todo, fosse por psicopatas americanos, fosse
por soldados americanos, ou voluntários por frágeis ideologias religiosas; à Guerra
Civil na Síria, os 78 civis mortos no “Massacre de Al-Qubair”, os 80 feridos
com a explosão do carro-bomba em Beirute; ao rastilho da guerra em Israel, na
Jordânia, na Turquia; ao homicídio de policiais por quadrilhas organizadas; a sequestros-relâmpago
e “saidinhas”; a mortes gratuitas no trânsito, ao infeliz, mas natural aumento
dos índices de criminalidade e de violência; ao despejo da Comunidade Nova
Estiva do Serviluz, à cachoeira de mensalões e mensalinhos de todos os dias; ao
vandalismo nos campos de futebol; à crise da dívida europeia; à seca no
interior cearense, à fome e à miséria de famílias; a cidade tomada por mendigos,
trombadinhas, viciados e pichadores; aos “arrastões”, que ao poucos se tornam
tradição; aos descuidos em terminais, ao trânsito ruim e impaciente, associados
ao medo de um tudo; aos falsos profetas enriquecidos; a sanha do consumo
inconsequente; a briga pelo poder; a política partidária crescendo acima de
qualquer interesse coletivo etc, etc. Cansado, muito, descubro que o ser humano, diante de tudo isso, não se indignaram o suficiente, e por isso, tudo perdura, fica como está.
Daí, um inesperado me fez
estar no Instituto José Frota, a “assistência municipal”, na madrugada do dia
31, socorrendo a um jovem casal, Bruno e Érika, ambos beirando os 20 anos, acidentados
na colisão de um moto com automóvel. Hospital lotado, filas imensas de pessoas nos corredores escuros e quentes — alguns empurravam os seus ou "de outros",
para lá e para cá, pois não se viam maqueiros —; gente sangrando, urinada,
desacordada, dormindo em cadeiras de metal sustentadas pelas paredes;
corredores e pequenos vão são tomados por macas improvisadas; pacientes
dormindo nas cadeiras metálicas de recepções de cada ala, enrolados em lençóis
cedidos por alguns enfermeiros; outros, vomitavam em baldes tomados de assalto
nas salas vizinhas; banheiros nojentos, sem nenhuma higiene, destinados ao público; no setor de radiologia, anunciava: "a máquina ia já, já pifar";
seres humanos tratados, como se pode, mas à revelia de tudo que se prega na
saúde. No meio de toda essa babilônia — verdadeira cena de guerra —, o
silêncio, o olhar triste de todos, ali, cansados, resistentes, acostumados com
o descuido e desamparo da vida. Apenas alguns aproveitavam do silêncio, olhavam para cima
em prece, por acreditar em alguma coisa ou esperar, como eu, por algo mais
dessa vida.
Lembrei que um dia ali
trabalhei, logo depois de formado, pouco mais de vinte anos. Não senti um pingo
de saudade.
Lembrei também das
discussões e disse-me-disse sobre a tal mega-plus-festinha de Réveillon, repleta
de caras estrelinhas. Lembrei dos milhões gastos em comemorações pelos governos
estadual e municipal para mostrarem para os outros estados que “nós podemos”; lembrei
da gastança que será a Copa do Mundo, com o bom auxílio do Governo Federal; da dinheirama
que se torra para ludibriar o turista nesta terra e que transformou o Ceará em
local de predação, onde o povo vale menos, bem menos, em troca de se vender
dim-dim, chegadinha, cartões postais e cervas, ou mesmo a rede de prostituição, drogas e sessões de enterro vivo.
Sentei-me ao lado da
cadeira de rodas da Érika. Ela, uma atendente de padaria. Fazia meses, estava
desempregada, depois do nascimento do filho, agora com seis meses. Ele, o
marido, porteiro de uma firma de construção, andava no corredor — suspeita de
fratura de mão — com o calção completamente rasgado, deixando-lhe à mostra a
cueca, mas ali ninguém percebia nada disso. Poderia andar-se nu, como os judeus
nos campos de concentração, e ninguém diria nada. Nada desses moralismos ridículos
têm qualquer valor diante de tanta miséria humana.
Busquei a agenda do meu
celular, com a necessidade e a recusa de ligar para alguém, para falar qualquer
coisa. Descobri que não tive coragem ainda de apagar alguns nomes: Airton
Monte, Lustosa da Costa, Manuel Bulcão, Ivonete Maia... O que fiz ali, naquele
corredor, como a derradeira despedida aos meus amigos.
Veio-me à mente que o
Nazareno Jesus chegou a este mundo no meio dos pobres, era o rei de
analfabetos, dos esquecidos, dos excluídos, de prostitutas, dos marginalizados.
Esse era o senhor filho do Homem que, como dizem, não tinha onde recostar a
cabeça.
Andei por horas
empurrando a Érika, também enrolada em lençol que consegui com um enfermeiro. Notei
que ela se esquivava, o que podia, quando eu a tocava para ajudar-lhe a
transferir-se de um lugar a outro. Dignidade. O casal trocava carinhos, às
vezes, como se penalizados de si. São sobreviventes num mundo que os explora e
que a cada dia mais os empurrará para o abismo sem fundo dos engodos
disfarçados em políticas públicas, onde a luz só chega através de urnas
eletrônicas. Fiquei com dó deles, tão ignorantes talvez de um destino que vemos
todos os dias à nossa porta, ao mesmo tempo em que os admirava por ainda
conseguirem ter coragem.
Por fim, sem fraturas, medicados,
entre bandagens e talas, fomos à Serrinha, onde residem. Aliviados, pediram
para passar na casa de uma tia para pegar o filho: “Cauê... Cauê Emanuel!” “Ah, é Emanuel?
Emanuel significa ‘Deus Conosco’ (Mateus 1:23)”.
Era a madrugada do último
dia do doce ano, conheci o pequeno Emanuel, inda em fraldas, sorrindo, com
brilho nos olhos, alheio a todo sofrimento de seus pais.
Acordei diferente, hoje.
Não melhor nem pior, mas sonhei, pela primeira vez na vida, com o calor frio da
palma da mão de um anjo.
Que tristonho,e revoltante;contudo o que valeu foi a sua comovente conduta com essas pessoas carentes;seu ato humanitário,caríssimo Raymundo Netto,não teve preço.Fez uma diferença gritante a esse casal,em meio a tantos desmandos,falta de solidariedade,de cumprimento dos deveres,dos orgaos competentes com o cidadão carente.Parabéns,pelo ato de fraternidade, embora tiste,mas para não fugires à regra uma bela crônica!
ResponderExcluirObrigado de sempre, amiga Zinah. Feliz 2013.
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