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Os
contos de Raymundo Netto trazem notícias da vida urbana e do sertão. E revelam
que algumas preocupações e inquietações povoam tanto uma esfera quanto a outra.
A narrativa intitulada “Intermezzo”, “Entreato” em Português, demarca
exatamente um espaço entre dois segmentos desta obra.
O
primeiro é marcado pela presença constante da solidão e da morte nas grandes
cidades. Também estão presentes as buscas da própria identidade ou do outro, ou
de ambos. O segundo é pontuado principalmente pela temática sertaneja, embora
nem sempre as histórias sejam ambientadas na região agreste. Elas são pontuadas
especialmente pelas lembranças e memórias de outros tempos, ou de tempo nenhum.
Na
verdade, estes temas perpassam tanto um bloco de contos quanto o outro; a
diferença reside na intensidade que o autor confere a eles na parte inicial e
na que se segue ao “Intermezzo”. O primeiro ato é povoado por personagens que
voluntária ou involuntariamente mergulham na mais completa reclusão. Para
sempre?
É o
caso, por exemplo, de Nazareno, do conto “Gato”, que se distancia dos
familiares e desenvolve uma relação simbiótica com seu animal de estimação. No
mesmo sentido Dona Carmosina, em “O Mistério do Sótão”, incapaz de gerar vida,
reserva seu afeto a um ser inanimado, enquanto aos seres vivos destina um
profundo sentimento de avareza e de amargura, em um impressionante contraste
psicológico.
Por
outro lado alguns destes personagens são deliberadamente conduzidos ao
ostracismo pela doentia hipocrisia. Convenções sociais irracionais atuam como
deuses cruéis e caprichosos dispostos a determinar o destino de suas criaturas.
No conto “Condomínio” fica bem clara esta intenção quando seus moradores acusam
Juca de invasão da privacidade alheia por permanecer nu em seu apartamento. Até
então o protagonista ignorava ser alvo da atenção de seus vizinhos;
envergonhado e ciente dos olhares dos demais, ele transforma sua aparência em
uma constante obsessão e inverte o jogo; agora é Juca quem desnuda os
condôminos, pois passa a observar atentamente cada um de seus passos, rompendo
os limites da vida privada. Levado à cena principal pela vizinhança, é logo
impelido ao abismo da solidão.
Nesse
cenário também se insere o Coronel Oswaldo; de homem respeitado e tradicional,
conselheiro matrimonial, o idoso se transforma, graças a uma prótese peniana,
em ávido Don Juan. Por conta de uma fantasia inofensiva, é logo convertido em
alvo de fofocas e brincadeiras ofensivas. Como Juca, torna-se vítima da solidão
da popularidade. Normalmente este mal tem um trágico desfecho. Estes contos
mais sarcásticos lembram muito a fina ironia de Machado de Assis.
Alguns
temas bíblicos também protagonizam os contos de Raymundo, especialmente o do
sacrifício. A condição feminina é exposta em histórias como “Cafarnaum” e “Redenção”:
A primeira retrata uma cidade típica do mundo moderno, pela qual transitam
seres incapazes de se redimir diante da dor, exatamente como na terra natal do
apóstolo Simão Pedro, que se recusa a acolher o Evangelho e por esta razão é
pretensamente condenada à destruição.
Por
instantes seus habitantes parecem se mobilizar ao testemunhar o assassinato de
uma bela jovem, sacrificada por sucumbir ante a vaidade. Mas logo se revelam
autômatos anestesiados por falsos dramas exibidos na TV. Ilusão e realidade se
chocam em suas mentes insensíveis.
Em “Redenção”
o julgamento social incrimina previamente uma jovem esposa e assim destrói um
casamento, amaldiçoa uma família e esta maldição se perpetua, culminando no
sacrifício de outra figura feminina, a imaculada e apaixonada segunda mulher de
Gedeão.
O
ritual sacrificial atinge também os personagens masculinos. Um dos contos mais
impressionantes é “A Ventura de um Morto”. Nesta história o autor atinge o
ápice da crítica social. Em uma sociedade na qual tudo está à venda, desde
cabelos, órgãos humanos, virgindade e a própria alma, deveríamos nos
surpreender com o desenrolar desta história? Ou com o que é retratado em “Filho
do Cão”? Ambos são pontuados por uma atmosfera surreal, como a que marca a obra
de Kafka.
No
primeiro, um executivo passa mal em uma via pública e cai aparentemente morto
na calçada. Em momento algum é socorrido por alguém. Como se não valesse
absolutamente nada, é roubado, despojado de suas roupas, chutado, jogado de um
lado a outro, atropelado, privado dos próprios órgãos. Após uma odisséia
surreal, é santificado e praticamente crucificado, em uma alusão ao sacrifício
de Jesus.
No
conto “Filho do Cão” o protagonista também percorre uma longa jornada, porém no
sentido inverso. Aqui, desprovido de todo e qualquer recurso, cansado de ser
humilhado, ele vende sua alma ao Diabo. A partir deste momento passa a ser
reverenciado, glorificado, e se dá conta de que estas pessoas também são servas
da entidade.
O traço
psicológico de Clarice Lispector, presente em suas densas e complexas
personagens femininas, parece ser uma das influências do autor na composição de
suas protagonistas, tais como Cícera, de “Álbum de Fotografias”, que se consome
na solitária cela do matrimônio; a avó anônima de “Domingo”, desprovida de
identidade, esgotada pelo ofício de servir a família; a garota de “A Mulher de
Antes”, na sua jornada cíclica em busca da identidade; e a solitária de “Memorialva”,
que de tão reclusa entra em simbiose completa com o ambiente opressivo no qual
se encerra.
O
segundo ato apresenta histórias mais longas, sinalizadas por uma profunda
melancolia e pela inexorável passagem do tempo. São contos mais poéticos e
líricos, porém marcados a ferro pelas agruras do sertão ou da vida. Como “O
Circo”, no qual o palhaço Cambalhota relembra momentos traumáticos do passado,
quando volta a ser o menino Bené. A máscara de alegria cede espaço à profunda
desilusão da infância.
Em
histórias como “A Bodega” e “Cadeiras na Calçada”, a passagem do tempo impõe
transformações irreversíveis, contrapondo lembranças de um passado tradicional,
conservador, ao nascimento de uma era movida pelo progresso incessante e voraz.
Naturalmente nem sempre estas recordações trazem momentos felizes.
O autor
não se filia à categoria dos que fazem a apologia de um passado nostálgico. A trajetória
de seus personagens é demarcada por vicissitudes tanto no presente quanto no
pretérito. Mesmo as narrativas mais belas e repletas de poesia, com toques de
Guimarães Rosa e Drummond, como “Luzeiros”, “Ode ao Amor e à Morte” e “O Tio
Dançarino”, não deixam dúvidas: a tristeza, a dor e a morte estão presentes, anunciadas
na epígrafe inicial, assinada por Dante: “Vós que entrais, deixai de fora toda
esperança”.
Realmente
sentimos falta de luz e confiança em Os
Acangapebas. Aliás, o conto que dá título a este livro é um dos que mais
carecem de luminosidade, embora os raios de sol sejam inclementes no sertão. Às
vezes a leitura se torna sufocante e até mesmo deprimente. Algumas histórias
são realmente devastadoras, como “Gêmeas”, a “Mulher dos Gatos” e “Trégua”, nas
quais predominam o horror típico de autores como Poe e Kafka.
Com
certeza a realidade está aí presente; não há exagero algum, mas o próprio autor
admite, conscientemente ou não, que falta alguma perspectiva positiva a sua
obra quando na epígrafe final Goethe clama: “Mais luz!” E com certeza o leitor
assina embaixo.
Sobre o Autor:
Raymundo
Netto nasceu em Fortaleza, no Ceará, em 29 de junho de 1967. Ele se formou em
Fisioterapia, mas logo optou pelo universo artístico. Iniciou sua carreira no
cinema de animação e como produtor de “Hogro: uma homenagem aos 100 anos de
cinema”. Migrou para o mundo das HQ, passou pela Publicidade, pelo campo da
produção gráfica, militou na Educação Ambiental até definitivamente se
estabelecer na esfera literária.
Ele
ingressou nesta seara em 2005 com o lançamento de seu primeiro livro, Um Conto no Passado: cadeiras na calçada,
vencedor do I Edital de Incentivo às Artes da Secretaria da Cultura do Estado
do Ceará. Desde então apresenta uma vasta atuação no universo da Literatura. Em
2009 fundou o blog AlmanaCULTURA, no qual divulga eventos, projetos culturais e
literários: http://raymundo-netto.blogspot.com.br/
Seu
livro Os Acangapebas conquistou o II
Edital de Literatura da Secretaria de Cultura de Fortaleza em 2007 e o Prêmio
Osmundo Pontes da Academia Cearense de Letras no ano de 2011. Raymundo foi
membro do Conselho Curador da IX Bienal Internacional do Livro do Ceará em 2010
e hoje é editor adjunto das Edições Demócrito Rocha.
Fonte:
Raymundo Netto. Os Acangapebas.
Editora Fundo de Quintal, Fortaleza, 2012, 147 pp.
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