sábado, 29 de dezembro de 2012

"Loura Desposada do Sol", crônica de Pedro Salgueiro para O POVO



Sempre gostei desse verso de Paula Ney sobre Fortaleza. Tanto que resolvi em algumas crônicas fazer gaiatices com ele. A “loira” foi carinhosamente desmilinguida para “loirinha” e a “desposada” cruelmente metamorfoseada para “desmiolada”, “destiorada”, “descabelada”, “desterrada’, “desbotada”, “desancada” e outros mais.
Desde que deturpei pela primeira vez o famoso verso recebo reprimendas, elogios, brincadeiras de leitores e colegas de escrita. Alguns mais carrancudos me mandaram ler mais, que eu fosse conhecer o poema original de Demócrito Rocha, outros educadamente (e sutilmente) me sugeriram que já haviam “topado” com aquela frase em algum lugar; uns me corrigiam apenas mandando a cópia do longo texto trabalhosamente copiado, vários me cumprimentaram pela sacada “espirituosa” do uso do esplêndido verso de Antônio Sales.
Resignei-me e continuei a usar a brincadeira, sem maiores preocupações com os puristas e/ou os brincalhões de plantão. Até que fiz uso de “A nossa burrinha loura desmiolada pelo sol” em meu livro de crônica Fortaleza Voadora, de 2007, e recebi a estranha mensagem de uma suposta correligionária (dessas que saem da faculdade quase sem saber de nada e, de cabo eleitoral, são logo alçadas aos muitos cargos comissionados que terrivelmente infestam os nossos três poderes) me espinafrando por estar falando mal, usando até termos “depreciativos”, de nossa prefeita Luiziane Lins. Não precisa dizer que ri muito, depois respondi negando e confessando que até votei nela (a prefeita) e previ (para a moça) que ela logo chegaria aos cargos mais alto dentro da administração municipal.
Mas, pasmem!, com o passar dos anos comecei a ler minha inocente gaiatice nas bocas (ou melhor, nas páginas) de outras pessoas. O saudoso Aírton Monte vez por outra tascava a reles frase corrompida no meio de uma de suas divertidas crônicas. O amigo Ricardo Kelmer a vive citando em palestras e até em convites eletrônicos. Dia desses o contista-arquiteto Brennand Bandeira me ligou perguntando se realmente aquela frase era “minha”, pois a vira numa ótima página do Romeu Duarte (e o pior, diz ele, atribuída a outro), eu imediatamente esclareço que não, dou a fonte original (e correta) e assumo apenas a peraltice da deturpação. Até um anacrônico grupo de recitadoras de versos noite dessas deu o vexame de citar erroneamente o glorioso verso durante um dos mil e quinhentos lançamentos de livros mensais de nossa culta loirinha esfarrapada pelo sol.
Claro que minha pouca vaidade jamais permitiria que eu me ofendesse pelo uso indiscriminado do que foi apenas uma simples molecagem: a deturpação de um importante símbolo de nossa cidade. Mas de vez em quando dá vontade de fazer como aquele escritor que estava assistindo a uma palestra em que, lá pelas tantas, uma ideia sua foi citado como de outro. E, mesmo sendo tímido, o “verdadeiro autor da importante descoberta” se levantou da plateia e interpelou o palestrante:
— Me desculpe, nobre amigo, mas esta frase não é de fulano de tal! Sei que não estou sendo educado te interrompendo. Mas “esta” ideia é minha, e tenho tão poucas que acho justo defendê-las com unhas e dentes!

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