O
pobre do cronista, acuado pela falta de assunto, vive à procura de um personagem na multidão de anônimos que pululam
pelas ruas de nossa escrotinha loura desmazelada pelo sol. Um perneta ali, um
careca acolá, bem adiante um velhote de pente no bolso e brilhantina no cabelo
ralinho (cuidado há de ter o infeliz do escrevinhador desocupado, pois, como
assegura nosso cronista maior Airton Monte, negro não é mais negro, gordo não é
mais gordo, pobre não é mais pobre, nem puta é mais puta, então se procura
logo, para não criar problemas com ninguém, um danado de um eufemismozinho de
meia-tigela).
Dia
desses encontrei um personagem que não tinha lá muitos predicados físicos que o
destacasse da maioria ignara: altura normal, magreza sem graça, uma feiúra
quase suportável. Tirante a canela finíssima e uns olhos esbugalhados, passaria
despercebido em qualquer fila de banco.
Mas
o que o distinguia dos outros e o colocava na fila dos personagens que poderiam ser utilizados pelo
cronista sem assunto era uma característica psicológica notada por todos: o
ressentimento. Olhando de perto não se acreditava — como era ressentido o nosso
futuro personagem! Conversando meia hora com ele já teríamos uma coleção
valiosa de pérolas do ressentimento.
Primeiro,
ressentia-se de uma infância sem novidades: não jogou bila, bola ou bilhar com
os companheirinhos. Não tomou banho de açude ou rio, nunca de chuva, apenas de
bica. Na adolescência era sempre deixado de lado pelas meninas mais bonitinhas,
nem paquerar conseguia. Por conta disso casou-se com a primeira namorada, quase
sem conhecer ainda as muitas nuanças do amor, suas veredas e atalhos:
tornou-se, portanto, um ressentido do amor. Ver os colegas bem casados para ele
era um tormento, então não se cansava de tentar separá-los: paquerava com uma, mandava
bilhetes para outras, piscava o olhão para a incauta da mesa à frente.
Escolheu
uma profissão terrível, só tédio e monotonia. Mas para fugir dos percalços de
sua vida tristonha resolveu se dedicar às artes, pois tinha uma ponta de
sensibilidade em meio ao profundo poço (cheio de esterco) de sua alma.
Incansavelmente publicou, com o próprio dinheiro, um livro atrás dos outros por anos e anos. Tantos
que até ele mesmo tinha dificuldades em contá-los, nomeá-los, classificá-los...
Se
sua poesia não agradasse aos outros, coitados dos outros. Se sua prosa mais que
comum não satisfizesse os críticos, coitados dos críticos. Se as editoras nem
bola dessem aos seus insistentes envios de originais, infelizes das editoras.
Se um colega escritor fosse agraciado com um prêmio, estudado no vestibular,
convidado a escrever num jornal ou
revista; e se fosse, então, solidamente casado, jovem e bem apessoado, que Deus
o protegesse. Enfim, coitados de todos os colegas.
O
homem era um poço de ressentimentos: transbordava aos borbotões por todos seus
poros a ira da inveja, o asco da maledicência. Ruminava diuturnamente suas
próprias fezes e extraía do seu hálito fétido o mais puro e maléfico
veneno, que (depois de bem estilado) ele ia, pouco a pouco, injetando nas veias
dos que estivessem na sua mira.
E como
era de se esperar, o ressentido acabou sozinho: os filhos bem distantes, a
ex-mulher só lembrava-se dele na hora de receber a pensão, os amigos foram
saindo de fininho, os vizinhos foram aumentando os muros. Quando nem bem
esperava (ou será que esperava e, num teatro de puro masoquismo, se regojizava
com tudo isso?) ele acabou sozinho em sua grande casa, cercado de livros, os
muros ao redor altíssimos mal o deixavam ver uma frestinha de luz do sol.
Então, já não podendo mais exercer seu triste ofício do ressentimento,
postou-se na frente do espelho e sobre ele jogou todo o seu ódio guardado desde
a mais remota infância.
P.S.:
Um amigo maldoso (mas bem inteligente e afeito a generalizações) afirma que, na
verdade, não se trata de um indivíduo, mas de uma geração inteira de
ressentidos; e ainda tenta teorizar sobre a tal geração (que ele intitula
“degeneração”): “Era uma turma da qual muito se esperava e bromaram todos. Que,
também, esperava muito de si. Cada um surgiu com um rei na barriga, atirando
pedras em quem estivesse no caminho: e hoje (que quase todos os reis foram
destronados, só lhes restaram as barrigas), tantos anos depois, só lhes sobrou
a empáfia, o fracasso, o melindre. E o ressentimento!”. Depois, dando uma
gaitadinha cínica, ainda arremata (feito um vampiro com sua faca de prata):
“Esta, sim, é a verdadeira Geração Perdida, não escapou um!”.
Crônica sensacional em todos os sentidos. Delata muitos seres que dividem o mesmo solo e sol conosco em nosso cotidiano. Crítica perfeita para uma era cheia de Ressentimentos!
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