Nasci, à noite, num dia de São Pedro. Minha mãe sempre
contou: “enquanto você estava nascendo, meu filho, eu ouvia os fogos a estourar
no céu!” Deva ser daí, creio, a paixão que sinto pelas festas juninas, pelas
músicas em volta da fogueira, por bandeirinhas de papel penduradas — ainda com
grude — em cordões de palha, e pelos “anavans” e “anarriês” dos
tempos de rapaz...
Assim sendo, não perdi a oportunidade de ir ao Arraiá do Ferreira, o da prefeitura, na
nossa praça-coração que, desde tardinha, se encontrava pulsante, colorida por
quadrilhas, arrasta-pés, barraquinhas de comidas e bebidas típicas. A novidade,
entretanto, era a “instalação” de uma cidadezinha brejeira de compensado e
papelão de cor, tematizando o local. Decidi explorar a tal cidade. Por detrás
da igrejinha, encontrei um vasto milharal de papel crepom. Pus a caminhar meia
légua por uma trilha amarela até encontrar, sob o quadrante solar, entre
batatas-doces, jerimuns e feijões, um espantalho de olhar melancólico e
ensimesmado, sentado e fazendo, com os dedos tremulantes, pequenas gaiolas de
arame. Sua cabeça de estopa estava rodeada pelo zunzunado de moscas azuis que
lhe puxavam um “rabo-de-cavalo” branco de milho. Ao seu lado, um aparelho de
fax tremia sobre um hipopótamo de lodo.
Aproximando-me um tanto mais, logo divisei nele feições
familiares. Dada a ocasião, poderia até me confundir, mas era mesmo que estar
vendo o poeta Francisco Carvalho.
Puxei assunto. Ele a estranhar meu interesse naquela conversa.
Perguntei, mesmo assim, se não queria participar da festa que se ia animada. O
espantalho olhou-me por sobre os óculos, com pouco entusiasmo:
— Os pobres estão se evaporando à vista de todos. O tempo vai
passando, os pobres vão se decompondo, seus rostos são apagados pelo vento e da
memória dos computadores até que ninguém se lembre mais de suas caveiras
sorridentes afugentando os parasitas dos burocratas nas repartições públicas,
e, enquanto isso, os poderosos sacodem suas nádegas fotogênicas.
— Engraçado, Espanta, você não só parece o Francisco
Carvalho, mas fala como ele.
— Qual o seu nome, rapaz? — desconversou, curioso.
— Raymundo Netto, mas pode chamar-me só Netto.
— SONETO? Que nome mais poético... “Sonetista”, porém, é
obsceno! — sorriu.
De repente, o espantalho pôs-se ao serviço num interminável
festival de “xôs”, lançando os braços desengonçados contra insistentes corvos
de alumínio que ameaçavam o milharal. Os frouxos botões da camisa xadrez rota
permitiam que, da barriga, das mangas e do pescoço, espalhasse a palha, fina e
ressequida, pálida como o passar dos anos.
Recompondo o palhaço da barriga, explicou:
Sentando-se, começou a torcer as pernas folgadas para tirar a
umidade incômoda da lama. Olhando para o horizonte azulejo, como a montar o
cavalo cor de vento na poeira, assistia com interesse ao Zé Doidinho, o beato,
que atravessava a veredinha de isopor, sendo imediatamente seguido por João
Rodrigues, Monsenhor Vital, e pela procissão do Cristo Morto empunhando a
bandeira do Ateneu São Bernardo. A rememorar, emocionava a retina de feltro que
sorria.
— E de poesia, Espanta, você também gosta?
Torcendo a boca diante da interrupção abrupta, resmungou:
— O poeta é um exilado dentro de si mesmo. Fazer um poema não é dizer coisas profundas, e sim, ver
as coisas como as coisas não são! Ora, Soneto, o poeta sabe que não precisa
estar o tempo todo bolinando as coxas da metafísica.
Ali, senti que, embaixo do tímido chapéu de palha, seus
pensamentos soçobravam numa barca dos sentidos enquanto assobiava um trechinho
de O Bicho Homem. “Que bicho é esse que carrega o fardo de uma dor
medonha, que sucumbe o fardo, mas ainda sonha?”
Umas “ah, dorinhas” cruzavam aqueles céus quanto
pétalas e confetes, encimadas pelo sol de celofane laranja, aliviando as dores
da existência da constelação de átomos e células, em permanente atrito, que
ainda acredita: “fazer poema é estar em conflito com os dedos da mão”:
— É, seu moço, poderia não mexer mais uma palha se assim o
quisesse, mas passei a vida inteira dedicada à poesia, um teatro sem plateia,
uma ribalta às moscas... Agora eu sei o quanto basta à ceia do coração e o
quanto sobra do naufrágio das nossas utopias. Ah, e eu que só queria um poema
para escrever no asfalto...
— Não se avexe, não, poeta, quem lê o seu texto e reconhece a
riqueza de imagens vivas e imunes ao bolor do tempo, compreende bem o quanto
você se entregou a ele. A obra é sempre maior que o autor. Você faz bem a sua
parte, combatendo com arte, os dogmas, a pobreza, as injustiças sociais diante
da omissão da elite econômica e governamental, e revelando o descaso por qual
padece o autor nordestino. Quisera que alguns dos supostos “novos poetas
cearenses” tivessem a ousadia de ler um pouco dos seus poemas antes de saírem
nus, falando palavrões e fazendo macacadas para chamar atenção (já que pela
palavra não convencem ninguém), dizendo que isso é “fazer poesia”...
— E não é que todo romancista, em certo sentido, é um
memorialista? — brincou. — Mas se engana, não sou esse tal poeta. Sou apenas um
sonhador que dormiu na palha diante do caos do mundo.
Tardava. O vento frio caudava, a rastos, estrelas de papel
laminado. Os fogos e o balão multicor do Gonzagão me chamavam. Apertei-lhe as
duas mãos que estalavam líricas, em despedida, enquanto ele puxava uma violinha
e tentava dedilhar, em versos livres, uma moda:
— Eu ainda aprendo... Ora, se não!
— Ei, Espanta, você nem me disse o seu nome — lembrei.
— Não tenho um nome bonito que nem o seu, Soneto, mas se
quiser, o amigo pode me chamar de Chico!
Francisco
Carvalho (junho
de 1927), poeta, nasceu em Russas, Ceará. Autor de Memórias do Espantalho
(2004), Barca dos Sentidos (1989) e Corvos de Alumínio (2007). Com Quadrante
Solar (1982) ganhou o prêmio Nestlé de Literatura, e com Girassóis de Barro
(1997) o prêmio da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Casado com a
dona Dora, tem três filhos, oito netos e um bisneto. Alguns
dos trechos do texto foram transcritos ou adaptados da obra do poeta.
Raymundo Netto.
Alguém que escreveu um poeminha “Quisera ser um soneto” aos 18 anos, e que
gosta de presentear, com textos, artistas cabeças-chatas e duras.
Incrível!
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