Criaturas,
livro de Rochett Tavares, lançado pela La
Barca Editora, vencedor do Prêmio Otacílio de Azevedo (reedição), promovido
em 2010 pelo Governo do Estado do Ceará, traz como proposta a narrativa de
contos de horror que nos fazem imergir no universo do desconhecido, levando-nos
a um estado de perturbação não só pela forma surpreendente com que cada enredo
se apresenta, mas também pelo fascínio de desvendarmos os mistérios que se
esgueiram de nós em cada frase escrita.
O livro apresenta como título a proposta
do que será compartilhado no decorrer de seus oito contos, ou seja, um convite
a mergulhar num universo das histórias de horror, apresentando-nos não só o
lado sujo das criaturas “amaldiçoadas” por um aspecto sobrenatural sombrio, mas
também o incômodo que é perceber que se pode sentir tal asco por seres humanos
cada vez mais desumanizados e transformados por seus atos obscuros em Criaturas.
Nascido na cidade do Rio de Janeiro
(RJ), em 1975, Rochett Tavares tem sua estreia como escritor com a obra Criaturas, a qual se apresenta como o
resultado de um interesse que surgiu ainda na sua infância: aventuras
fantásticas. O que era um passatempo tornou-se uma necessidade de expor através
de seus próprios escritos a influência dos diversos escritores de fantasia que
teve no decorrer de sua trajetória de leitor, mas na presente obra a que me
proponho resenhar há, sem dúvida, a forte influência e inspiração de H.P.
Lovecraft, no que diz respeito, principalmente à construção da narrativa.
Não se trata, portanto, de um romance,
mas sim da junção desses contos que, na verdade, se apresentam como capítulos,
páginas de um destino que se esconde num lado oculto que, durante dias e noites
ao redor do mundo, vai sendo cumprido por vezes com a ajuda do próprio homem,
através de sua curiosidade, malícia ou ingenuidade.
As narrativas, na sua maioria, passam-se
em locais da Europa ou dos Estados Unidos em épocas ou contextos diferentes.
Pode-se perceber, no entanto, que cada conto traz um enfoque à forma de
construir a narrativa de horror. A preocupação, portanto, se concentra em:
mostrar um cenário obscuro com um enredo que toca o sobrenatural, mas cujas
ações humanas tornam-se o verdadeiro horror a ser ressaltado sem eufemismos;
vasculhar, através da psique humana, o horror particular vivenciado pelos
personagens; apresentar o elemento sobrenatural, desconhecido, como algo que
faz parte da realidade e que se cumpre como destino muitas vezes através da
colaboração do próprio homem.
Nesse âmbito, pode-se perceber que, em
muitos contos, são abordados seres escusos (sobrenaturais ou não), que dominam
a escuridão das ruas, os recônditos dos bairros, sempre havendo uma mescla de
mistério em que, por mais que enxerguemos claramente a presença do elemento
fantástico em alguns contos, em outros, os desfechos nos apresentam como um
enigma a ser decifrado ou complementado pela nossa leitura.
O foco narrativo varia, podendo ser de
narrador em primeira pessoa a narrador-observador onisciente. Em “Retrato de
Família”, cujo narrador é personagem há uma visão parcial do que está sendo
narrado, quase como uma evocação de imagens, lembranças que se misturam num
fluxo de consciência, em que aos poucos são reveladas respostas ou lembranças
reticentes. O horror se apresenta como o grande conflito do narrador-personagem
que participa da Segunda Guerra Mundial, perdendo sua visão romantizada da vida
e mergulhando no absurdo frio de uma guerra até aquele momento totalmente sem
sentido.
“A
comporta de saída escancara-se na praia, abandonando os infelizes à frente, à
mercê de uma implacável salva. Como fardos de feno arremessados num celeiro, o
que outrora eram jovens cheios de vida hoje amontoam-se uns sobre os outros,
deixando...
A
água gélida espeta meu corpo como pequenas lanças, envolvendo membros antes
vigorosos com um torpor convidativo.” (Criaturas, p. 17-18)
As cenas do conflito que ocorre nas praias
de Normandia no Dia D da Grande Guerra são descritas de forma detalhada,
misturadas à visão de angústia do personagem em encontrar-se em tal situação
desesperadora para ele. Trata-se inicialmente de um horror psicológico que,
todavia, também será tocado pela presença do sobrenatural num conflito que
ultrapassa a compreensão do que é realidade.
Já no segundo conto da obra, “Visita ao
Necrotério”, que se passa na França, a narrativa em terceira pessoa nos conduz
à mente perturbada de Maurice Lacroix, um investigador de polícia, que tenta
descobrir o autor de uma série de crimes que se assemelham a outros cometidos
décadas antes. Tal personagem se lança a desvendar a mente do psicopata que
procura, mas o leitor é surpreendido pela dúvida que sonda o horror particular
do personagem que, por vezes, se surpreende com a riqueza de detalhes que ele
adivinha, quase como lembranças do crime que investiga. A luta trágica do
personagem se estabelece pela tentativa de manter a sanidade em meio à
investigação, ao mesmo tempo em que vivencia e se surpreende ao se defrontar
com o desconhecido em sua mente.
“Enquanto
vasculha as entranhas do cadáver, Maurice Lacroix é assaltado por emoções
desconhecidas. O roçar de seus dedos na matéria estática e gélida do cadáver
provoca ondas de um calor espasmódico, como se a carne morta da jovem
desconhecida à sua mercê transmitisse-lhe os impulsos próprios às carícias
feitas em um objeto vivo...” (Idem, p.82)
Em outros contos, como em “Bom Garoto”,
o foco narrativo também em terceira pessoa, apesar de onisciente, opta por
levar o leitor a desvendar o enigma quase em parceria com os personagens. Por
sinal, tal episódio traz um momento em que a crueldade da “criatura humana” é
posta em xeque, assim como nos surpreende perceber que os seres inumanos podem
expressar atitudes mais humanas do que nós.
A obra guia o leitor a um mundo
desconhecido, cuja narrativa, por vezes propositadamente reticente, conduz a
leitura para um nível da curiosidade, quase como instigando o interlocutor a
complementar tais “lendas” com testemunhos seus. Mesmo quando o foco é em
terceira pessoa, a narrativa, por seu mistério, nos parece um apanhado de
testemunhos, como um quebra-cabeça para que nós possamos desvelar um segredo
maior que está oculto, algo que se esgueira pelas sombras da noite. Cada rua,
cada beco, cada fato histórico parece ter como pano de fundo a presença
constante desses seres sobrenaturais, porém não se exime o homem de sua
crueldade em determinadas atitudes que podem influenciar no desfecho desse
destino oculto.
O que nos deixa reflexivos é até que
ponto as criaturas podem ser mais humanizadas do que o próprio homem em
determinados contos, pois elas são, por vezes, levadas pela necessidade que a
maldição lhes impõe. Os atos cruéis tornam-se uma luta pela pseudossobrevivência
desses seres que estão no limiar de uma pseudoexistência. A morte e a vida são
uma tênue linha seguida por eles, que não têm opção e se submetem a perder a
identidade humana que um dia tiveram para seguirem essa nova espécie de
existência; outras vezes se entregam a essa exigência dessa nova forma de
coexistir com o homem, deixando-se levar pelo instinto, mesmo que, para isso,
suas ações se tornem dor para outrem.
Contudo, nota-se também que a dor, o
egoísmo que guia essas novas formas de “não-vida” pode se apresentar no
inconsciente de todo ser humano plenamente vivo, tanto por atos insanos como
meramente egoístas, mostrando que o pavor e as tragédias também existem (e, por
vezes, primordialmente existem) por conta da própria ação do homem.
A coletânea de contos traz, nesse
sentido, esse incômodo ao coração do leitor, que percebe que por trás de toda
dor há, nem que seja ínfima, a participação do próprio homem e que as criaturas
sobre as quais se pode jogar a responsabilidade de atos considerados maléficos,
por vezes são meras observadoras ou se aproveitam do que a ocasião oferece para
se manterem “vivas” nessa nova realidade à qual foram imersas por sua maldição.
A obra, portanto, pode ser lida por
qualquer pessoa que esteja disposta a imergir nesse submundo de mistérios
incontados, que nos são compartilhados para que possamos refletir também sobre
nossos próprios atos. Os segredos, os sussurros das personagens sobre o que
presenciaram, vivenciaram na escuridão, essas verdades contadas em Criaturas nos fazem refletir sobre
nossos valores no dia a dia, percebendo que no espírito está, por vezes, a
saída.
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