Nilto Maciel em Limoeiro, 2011, durante a I Feira do Livro
(foto: Raymundo Netto)
Quem completará as inadiáveis
tarefas do morto? Quem acabará de arrumar sua penúltima mala, na qual só
faltava uma camisa engomada, já que a calça de brim jazia bem dobrada ao lado
da pasta com o fecho aberto até quase a metade (por onde dali a pouco ele enfiaria
o discurso de abertura de um congresso macabro).
Quem terminará de pôr sua
derradeira postagem na página que era seu barco, sua âncora, sua tábua de
salvação de náufrago sem remissão? Qual dos amigos postará um primeiro e o
último comentário póstumo, com a bendita insulina do elogio fácil que tanto azeitava
o parco sangue do morto?
Quem de nós, amigos de sempre e
os ausentes, aparará pela última vez as unhas tortas do morto; qual deles se
sentará desconfortável no sofá puído, sobre a velha toalha com emblema gasto do
glorioso “Tricolor de Aço”, que tanta tristeza vinha trazendo ultimamente ao
finado?
Quem completará o último romance
do corpo magro e putrefato que jaz inocentemente estendido no pequeno corredor
entre o banheiro, o quarto de dormir e a sala?
Quem ouvirá de sua boca minúscula
que aquele seria seu Ulisses, seu
canto de cisne, sua última e mais perigosa jogada: depois da qual não se
sustaria pedra sobre pedra do que imprudentemente escreveu antes?
Quem da famigerada corja dos
companheiros de copos, de colegas de geração, de novos e velhos parceiros de
penas, escutará suas derradeiras idiossincrasias, seus restantes insultos
velados, suas últimas indiscrições escritas?
Quais dos ouvidos singelos,
limpos e sempre disponíveis, escutarão suas reles blasfêmias de ateu reimoso,
seus vãos arrependimentos, suas dolorosas lembranças de infância, por onde
desfilarão – irremediavelmente sumidos – seus pais, tios, irmãos, todos
mortinhos covardes que o foram deixando sozinho pelos pedregosos caminhos da
vida?
Quem dentre os muitos
companheiros de vida ecoará pelos ventos suas iras, sonhos, amores, dissabores,
langores, sussurros e preces?
Quem raspará a rala barba diária
do morto, quem cofiará com seu modo único o velho bigode aparado tão baixo,
discretamente escondendo o riso cínico, a impune maledicência, os dentes finos
trincados de dor?
Quem dentre os já mortos o vai
auxiliar no profundo estudo da geologia dos campos santos? Quais dos Josés,
Aírtons, Edinardos, Aldas, Alcides, o ajudarão a aparar as raízes desse imenso
“mato baixo” que somos no fundo todos nós que por aqui restamos?
Quem editará seus livros
esquecidos, os quase concluídos e – principalmente – os que ainda seriam
escritos? Quem os postará nos correios para os tantos admiradores desse Brasil
tão grande? Quem receberá, por sua vez, a enorme quantidade de livros que lhe
enviarão todos os novíssimos poetas desse país gigante?
Quem vai restaurar os derradeiros
filmes, fotos e lembranças de vida para mostrar no moderno projetor, que ele
havia acabado de comprar e posto no quarto para presentear as quatro filhas
quando elas aqui por ventura aportassem?
***
Não! Não! Senhores! Um morto
assim não deveria morrer tão cedo, pois ele ainda tinha diversas coisas a
fazer, bastantes (e inadiáveis) tarefas para completar...
E muita, muita vida ainda por
viver!
“Demorou dias a agonia de Ascânio
Bustamante Coimbra. Vomitava versos, retorcia-se na cama, agitado, febril, voz
sumida. E finalmente expirou, translúcido como a evidência, magro, quase ossos,
e a pele manchada de letras.”
(do conto " O translúcido Ascânio",
de Nilto Maciel)
Nilto, suas letras estarão comigo enquanto eu viver.....Obrigada por tudo. Te amo, amigo!
ResponderExcluirUm abraço