"Você
é um velho. Um velho!" Assim o espelho do banheiro o saudava todas as
manhãs. Mas isso nem de longe seria sua maior aflição. Logo em seguida, sua
esposa sairia, linda e fresca, do chuveiro, a beijocar-lhe o rosto, levemente,
como se beija...um pai! Esta, sim, lhe era, seguramente, a mais perversa e assídua
humilhação de sua vida.
Há
20 anos, o casal perfeito. Ele, um professor quarentão, muito reconhecido e
mesmo invejado pelos seus pares; ela, aos 20, uma aluna, ansiosa em iniciar a carreira
na esteira daquele homem a orientá-la com a segurança de um farol. Ambos tão
dedicados a mesma coisa que nem precisariam de filhos ou de ninguém. Se
bastavam em tudo: conversas de entrar noite e dia, dia e noite, com intervalos
generosos para o amor, por vezes selvagem, beirando o obsceno, como num
romance, na ânsia de um destino ditoso, improvável e feliz.
Mas
o tempo foi se chegando e, nas ancoretas, ao invés de vinho, vinagre. O
professor, aposentado, pôs-se a envelhecer numa melancolia de dar dó, agarrando-se
a sua solidão, a quem sinalizava a "única companheira fiel", enquanto
a esposa, ao contrário, progredia a olhos vistos, viajando costumeiramente, convidada
para as mais diversas atividades, cumprindo o plano que traçara junto daquele a
quem um dia rogou juras de um amor irresponsavelmente eterno.
Difícil
confessar, mas para ele, vê-la ali, todos os dias, ouvi-la em seus sucessos,
tornou-se um castigo. Ela era o verdadeiro retrato de sua decadência. Com os
anos, era inegável, estava mais segura, mais radiante, e muito, mas muito mais
bonita. O tempo, pensava, rasgava-lhe com os dentes, enquanto com ela, apenas
lambia.
Para
o professor, incomodava as poucas vezes em que ia à faculdade, em homenagens
chorosas e sem sentido, de culto ao passado, a só lhe enaltecer o obsoletismo.
Como lhe doíam as lembranças daquilo que fora e tivera, mas que nunca mais.
Irritava-se também com os modos cavalheirescos dos professores a rodear-lhe a
esposa sempre sorridente e solícita, como se a qualquer momento fosse dançar
num salão. Poderia ser feia, ignorante, fria como a miséria, mas não, muito
pelo contrário, era tudo aquilo que sempre pedira a Deus, mas a um Deus
analfabeto, que escreve por linhas tortas. Daí no que deu.
Marcílio,
um jovem colega do departamento, se mostrava um dos tais que não largava das
saias da mulher. Sempre inventando projetos novos, ligando altas horas da
noite, convocando para reuniões a qualquer momento. Sabia o professor, no
entanto, que abusava do ofício para ganhar alunas, tendo sido até flagrado
certa feita, no que resultou um inquérito frustro. Por isso, mais difícil ainda
compreender a amizade dela com a figura. Ruim de engolir, mas cria: ela já havia caído nos braços daquele insistente cafajeste.
A esposa,
na verdade, numa ingenuidade distraída de mulher honesta, encontrara em Marcílio
um bom ouvido. Contara da indiferença do marido em casa, da sua pouca paciência
com assuntos de rotina, de sua recusa em passeios antes comuns, da estranheza e
diferenças entre os dois. Queria colo e o encontrava na dissimulação de
desinteressado amigo, que a abraçava e dizia poder contar com ele para qualquer
coisa, "Qualquer!", insistia. Sim, a desejava, mas não se
preocupasse: respeitaria a sua condição fiel. Nisso, na determinação do seu
fingimento e com a trama da intimidade, a mulher num feio dia lhe segredara:
temia pelo marido. Parecia sempre tão deprimido e trazia, na cabeceira da cama,
um revólver. Não gostava nem de ver. Pensaria em se matar? Será? Pensaria?
Tarde
de uma noite, como tantas, ela não havia chegado. O marido, mergulhava em seu
mundo de escritos, sentado à sombra da possibilidade da traição daquela mulher
que um dia se disse sua, "Só sua!". Foi quando Marcílio soleirou à
porta da casa. O professor desconfiou, gritou com ele, perguntou pela esposa.
"Cadê ela?" Marcílio sorriu sem cerimônia:
–
Ela é boa demais para você, velho. Não aguenta mais. Por que não morre logo,
diabo?
Foi
a gota d'água. Indignado, ele correu para o quarto, seguido pelo suposto
amante, e pegou o revólver na cabeceira, apontando para o rival. Mas que erro! Marcílio
era forte. Tornou com facilidade a arma em direção ao professor e, usando de
sua própria mão, apontou-lhe à boca, forçando o gatilho. E foi lá mesmo, no nó
de engasgos em sua garganta, onde se enlojou a bala, a mesma que, desde muitas
noites silenciosas e de espera, ele desejava, mas não ousara plantar.
Por
ironia, ou não, pela manhã, a própria mulher esclareceria para a polícia:
– Eu
devia saber que não podia deixá-lo sozinho. Faz tempo, desconfiava que isso
poderia acontecer. Ele estava tão estranho... tão... – e chorava lágrimas sem
fim.
No
velório, não se afastou do caixão, numa vigília doce e prolongada. Marcílio
chegou, de roupa nova e cheiro de colônia, pegou em seu ombro e com todo o
calor de seu corpo a consolou num abraço. E, oferecendo-lhe amizade
incondicional, deixou cair a mão com leveza, roçando a bunda provocante da jovem
viúva que, naquele instante, sentira num arrepio do corpo o alívio de um
remorso.
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