Para D. Lúcia
Dummar
Outubro de 2011.
Deixado um apartamento
amarelo, abri a porta do quarto da meninice na casa paterna. O seu bafio me
tomou o rosto, na tenção de imprimir-lhe o sorriso fácil da ingenuidade, ao
tempo que apontava-me o pó da ausência de tantos anos, de uma história, dizia
ressentido, adormecida.
Não me suportava aquele
quarto: escuro, quente, sujo e profundamente triste, porém tão cheio de mim a
assustar. Olhava à porta, sentia-me 20 anos mais jovem, assistindo meus pais 20
anos mais velhos. A surpresa de um futuro inesperado a todos. A ausência
devorando tudo.
Deitado na cama,
desconhecia aquele quarto, mesmo sendo ele tão fiel de minha memória. Não havia
irmãos, nem redes penduradas, nada do velho beliche, menos ainda as risadas e
falas excessivas de éramos seis.
No canto do quarto, vi um
menino magro, chorando com medo do escuro; desiludia-se e seguia em frente somente
pela fé própria de acrobatas e trapezistas, crente apenas que um dia, no
absoluto silêncio, um ser de nada, com corpo coberto de estrelas e língua de
fogo, cheirou o pó universal, e na quarta trombeta os lobos cuspiram o sol e a
lua, enquanto crocodilos se desmanchavam em água. De cada carreirinha de pó,
soprava um novo planeta com suas luas e lendas. Pintou com as tintas de seu
engenho um mundo azul, mais aquário do que zôo, e, ao murmurar no ouvido do
infinito o único “sim”, esse lhe bastou para que a história toda lhe tivesse
algum sentido.
O menino me encarava a
perguntar o que eu tinha feito com ele; por que eu havia brincado com a sua
vida... Dei-lhe as costas e dormi um sono sem sonhos.
Janeiro de 2013.
Sábado. Manhã quente. De
volta ao apartamento amarelo, em paredes nuas, na busca dos últimos largados,
encaixados à sala margeada por restos de gavetas, contas vencidas, pastas
empoeiradas, revistas nunca lidas, aparelhos nunca consertados, enfim, a
escória de uma vida.
Tudo aquilo que durante
mais de 30 anos guardei com cuidado em armários, levando e trazendo para cima e
para baixo, ali, em caixas emprestadas, amontoadas, me pareceram tão sem
importância. Em sacos, cartas e cartões enviados e recebidos, máquinas de
relógios, óculos velhos, garrafas e latas antigas, lembranças esquecidas. Da
vida, dizem com uma razão de decreto, nada se leva!
Sentado a esperar o
caminhão da mudança, ouvia no silêncio que passava por mim, as memórias da
casa. Outra, dentre outras não menos dura, despedida — “a vida é o exercício de
perder”.
Na minha última morada,
havia uma menina de uns seis anos, coleguinha de minhas filhas. Seus pais não
tinham boa condição financeira e estavam sempre com o aluguel atrasado. A
menina, muito pequenina e magrinha, tinha os olhos grandes e brilhantes. Vez ou
outra pedia à mãe que a deixasse em nossa casa, onde compartilhava da amizade e
dos inúmeros brinquedos do quarto das crianças. Ela mesma, em sua casa, pouco
tinha.
Um dia, veio se despedir:
iriam para outra casa — foram colocados para fora do imóvel da vila. Ela e o
irmão mais velho subiram à carroceria do caminhão que os conduziria ao novo
lar. Fiquei na rua assistindo a sua partida. Inda hoje não esqueço aquela
menina, em meio aos poucos bens da família, em pé, encostada ao colchão do
casal, nos braços uma boneca, presente de minhas filhas. Sorria e acenava
lentamente para nós, com seus olhos grandes, desta vez ao invés do brilho, uma
completa escuridão de incertezas.
Desse pensamento, lembrei-me
que ao me mudar para nova moradia, gostava de saber-lhe a história, algo sobre
os antigos moradores, o que faziam, porque saíram, e coisas assim. Possível
fosse, “limpava a casa”, pintava de cores vivas, enchia de lâmpadas, abria
janelas, a enfeitava, a alegrava, afinal ela, de então, acolheria as minhas
meninas.
Hoje, pedi desculpa
àquele apartamento por deixá-lo de herança uma história triste. Contudo, no
momento do adeus final — gosto de rituais —, antes de passar-lhe a chave,
lancei, como último consolo, a certeza de que, de fato, tudo que começa está
fadado a um final, mas certamente isso não funciona para o que é essencial e
verdadeiro. Essas coisas podem mudar de cara ou de cor, até de lugar, mas
perduram e nos acompanham a vida inteira.
Eita, Raymundo Netto, haja coração de leitor. Comovente, cabra. Essa história da menininha... esse lance de despedida... esse menino a se perguntar da vida... Boa. Quase choro.
ResponderExcluirAbraço.