Para
além da técnica, todo artista é dotado de uma percepção incomum – aquela que
faz o escultor pressentir o objeto “guardado” na matéria bruta; a certeza que
orienta o equilíbrio de cores na pintura ou indica ao fotógrafo qual cena
capturada é única. Chamem de instinto, bênção ou iluminação – não importa o
nome; existe essa marca que define e perpassa músicos, atores, bailarinos,
poetas... A habilidade de extrair do real uma fatia de beleza que quase ninguém
percebe: esse é o olhar poético, transformável e criativo. Na atual literatura
cearense, a obra de Carlos Nóbrega é um dos melhores exemplos disso, e o seu
mais recente título, Lápis branco (Guaratinguetá:
editora Penalux), só confirma as expectativas de quem busca se abismar com bons
versos.
É
assim, pela mão do poeta, que enxergamos o gato, animal feito “de dengo, pelo e
preguiça”: “Talvez seja bicho de seda/ ou alma andando de quatro/ Pois pisa a
Terra e não pesa/ e se evapora em um salto./ É mais mistério que fato,/ direito
e avesso de grave,/ E como o mistério/ É visível, /Existe, mas é improvável.”
Vemos as carnaubeiras, que “dão asteriscos verdes ao ar ido”, e sabemos que um
botão de rosa se contorce, para fazer “origami de si mesmo”. O passeio pela
vida, com as pequenas coisas da cidade, luzes e sombras, memórias e tristezas,
vem como um sobressalto a cada página – o poeta desnovela as palavras, querendo
“não doer”.
O
olhar poético se exercita na travessia entre mundo e linguagem. No caso de
Carlos Nóbrega, inclusive, basta uma rápida convivência para notar em seu
comportamento cotidiano essa expectativa do sublime, na atenção que dedica a
seres e objetos que possa transfigurar em arte. Certa vez, num encontro com
vários outros amigos, eu percebi que apenas ele observava a tatuagem de uma
desconhecida sentada de costas para nós, no restaurante. O arabesco vertical,
impresso entre as omoplatas, parecia a continuação de um penteado – um cabelo
convertido em desenho. Carlos me apontou a cena, perguntando se eu achava que a
moça tinha consciência daquele efeito estético. Disse que provavelmente não;
ela fizera um rabo-de-cavalo displicente. Foi o olhar do poeta que enxergou (e
criou) a metamorfose entre pelo e pele. Naquele instante, não interessava a
moça, que permaneceu para sempre sem rosto ou identidade. O poeta meditava no
arranjo de fios e traços, testando associações possíveis. Depois que o texto
despertasse, Carlos Nóbrega devolveria um fragmento de beleza, traduzido e
destilado, para que os distraídos percebessem: a arte vive no mundo, mas
disfarçada.
Após Outros poemas, Breviário, Árvore de
manivelas e 8 verbetes,
Carlos Nóbrega acrescenta, com Lápis
branco, mais um livro à minha estante de favoritos. Nela estão as obras que
me socorrem, trazendo claridade quando um dia ameaça acontecer em tom insípido.
Para adquirir o livro:
http://www.editorapenalux.com.br/loja/product_info.php?products_id=85
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