terça-feira, 18 de setembro de 2012

"Viúvas Biblioclastas", saborosa crônica de Marcelo Gurgel



A sabedoria popular dá conta de que as traças e os cupins são os grandes inimigos dos livros; o fogo e a umidade o são para as bibliotecas. A diferença entre eles é que os primeiros agem no plano micro e os últimos, no âmbito macro. No meio cultural, pasmem, costuma se acrescentar as viúvas, entre os biblioclastas, já que, maldosamente, são acusadas de causarem efeitos deletérios em ambos cenários.
Existem em Fortaleza, como também em outras capitais brasileiras, inúmeras lojas de “sebo”, que oferecem livros usados, normalmente advindos do esfacelamento póstumo das bibliotecas particulares, por intervenção intempestiva de certas companheiras de tálamo dos falecidos, as quais, muitas vezes, sequer esperam a Missa da Ressurreição do pranteado esposo, para se desfazerem das obras amealhadas pelo extinto, ao cabo de sua longa jornada terrena.
Para elas, pouco importa o valor estimativo dos livros ou se a coleção contém obras raras, de inegável valor histórico ou cultural, ou mesmo se foram autografadas pelos autores, ainda que seja ou tenha sido um renomado escritor. Nesses episódios, o estado de conservação dos livros não é levado em conta. Para simplificar, tais honoráveis senhoras não os vendem no peso ou na quantidade, devidamente mensurada, mas pelo metro linear, grosseiramente aferido nas estantes.
Os livreiros, que farejam essas oportunidades comerciais, não podem, todavia, ser considerados oportunistas, ao adquirem o produto por preços aviltantes, porquanto se trata de um bom negócio, vantajoso para ambas as partes: livram, no atacado, essas donas da herança, de um pseudo “entulho”, só entendido assim por quem tem obnubilação, e vendem, no varejo, ao sequioso segmento de bibliófilos e outros interessados em participar do botim, transferindo os seus cobres aos intermediários da transação, mal sabendo esses que podem ser alvo da mesma rapinagem, alguns anos à frente, quando ganharem um paletó de madeira e suas diletas companheiras, de agora, replicarem a mesma prática do delivramento literário doméstico.
Não é, pois, prudente, criticar a atuação dos livreiros, nesse mercado editorial paralelo, uma vez que eles estão auferindo legitimamente o seu ganha-pão, além do que cumprem um importante papel na cadeia comercial do livro; nesse caso específico, possibilitam até que obras raras, que poderiam ter um destino final inglório, como a incineração, o aterramento, e/ou ainda o reaproveitamento como papel de embrulho, e, por sua iniciativa, acabam por cair em boas mãos, sendo incorporadas a outras bibliotecas pessoais, até que a indesejada das gentes venha com uma nova ameaça de desova, literalmente, separando o que se juntara por afinidade: bibliófilos e livros.
De certo modo, não se pode condenar, de todo, a biblioclastia conjugal feminina, fruto notadamente de uma educação literária capenga das tais matronas, concedendo-se atenuantes a essas “bibliocidas”, porquanto, afinal de contas, tanto a constituição como a manutenção de uma biblioteca consomem vastos recursos monetários que deixam de ser aplicados em outras necessidades do provimento do lar. Ademais, persiste aquele espírito de vingança: a leitura dos livros ocupava precioso tempo dos seus maridos, subtraindo momentos da convivência familiar e do cuidar da prole, e, quiçá, exercendo uma atroz concorrência na atenção de seus parceiros. Parece a velha história de ser a biblioteca a “outra’, como se fosse uma amante “teúda e manteúda”, interferindo na relação conjugal.
Por vezes, o despojamento dos livros pode ser decorrente do imperativo da mudança de domicílio; nesses casos, a perda do esposo traz a sensação de que a casa tornou-se muito grande, fato que se alia à pressão imobiliária, ávida pelo terreno do imóvel para edificação multifamiliar, fazendo com que a viúva decida mudar-se para um apartamento, cujos cômodos não conseguem acomodar o acervo literário legado pelo provedor desaparecido. Uma saída honrosa ou desculpa esfarrapada para justificar a perda do lugar que os livros ocupavam nas estantes da casa e no coração do falecido.
Há também um aspecto subjetivo nessa questão, de vez que, para algumas sobreviventes da dissolução conjugal, a simples vista das estantes reaviva as lembranças do finado, que nem sempre foi um marido exemplar, sendo vital, para a ruptura do luto da viuvez, que ditas obras, encaradas como velharias, sejam erradicadas do seu campo visual, o mais rápido possível. É aí que se aplica o provérbio, em inglês: out of sight, out of mind, ou, na versão portuguesa, “longe da vista, longe do coração”.
Para os bibliófilos, que tanto amam seus livros e temem um destino cruel reservado a esses tão caros amigos, há duas possibilidades, ambas de caráter precaucional: a primeira, é ser egoísta, anunciando e ameaçando a esposa de que voltará, nas madrugadas, para puxar-lhe o hálux, caso ela dê fim ao seu patrimônio livresco; a segunda, é ser altruísta, agindo com nobreza, deixando exarado, em testamento, que após o seu desenlace final, evidentemente, a sua biblioteca pessoal seja doada e incorporada a uma biblioteca mantida pelo poder público ou até outra, de livre acesso ao público, como as pertencentes a entes associativos profissionais ou culturais.
Só assim ficaria garantida a perpetuação do livro, tão mais duradouro do que a própria existência humana.
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Da Academia Cearense de Medicina

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