A sabedoria popular dá conta de que
as traças e os cupins são os grandes inimigos dos livros; o fogo e a umidade o
são para as bibliotecas. A diferença entre eles é que os primeiros agem no
plano micro e os últimos, no âmbito macro. No meio cultural, pasmem, costuma se
acrescentar as viúvas, entre os biblioclastas, já que, maldosamente, são
acusadas de causarem efeitos deletérios em ambos cenários.
Existem em Fortaleza, como também em outras
capitais brasileiras, inúmeras lojas de “sebo”, que oferecem livros usados, normalmente
advindos do esfacelamento póstumo das bibliotecas particulares, por intervenção
intempestiva de certas companheiras de tálamo dos falecidos, as quais, muitas
vezes, sequer esperam a Missa da Ressurreição do pranteado esposo, para se
desfazerem das obras amealhadas pelo extinto, ao cabo de sua longa jornada
terrena.
Para elas, pouco importa o valor
estimativo dos livros ou se a coleção contém obras raras, de inegável valor
histórico ou cultural, ou mesmo se foram autografadas pelos autores, ainda que
seja ou tenha sido um renomado escritor. Nesses episódios, o estado de
conservação dos livros não é levado em conta. Para simplificar, tais honoráveis
senhoras não os vendem no peso ou na quantidade, devidamente mensurada, mas
pelo metro linear, grosseiramente aferido nas estantes.
Os livreiros, que farejam essas
oportunidades comerciais, não podem, todavia, ser considerados oportunistas, ao
adquirem o produto por preços aviltantes, porquanto se trata de um bom negócio,
vantajoso para ambas as partes: livram, no atacado, essas donas da herança, de um
pseudo “entulho”, só entendido assim por quem tem obnubilação, e vendem, no
varejo, ao sequioso segmento de bibliófilos e outros interessados em participar
do botim, transferindo os seus cobres aos intermediários da transação, mal
sabendo esses que podem ser alvo da mesma rapinagem, alguns anos à frente,
quando ganharem um paletó de madeira e suas diletas companheiras, de agora, replicarem
a mesma prática do delivramento literário doméstico.
Não é, pois, prudente, criticar a
atuação dos livreiros, nesse mercado editorial paralelo, uma vez que eles estão
auferindo legitimamente o seu ganha-pão, além do que cumprem um importante
papel na cadeia comercial do livro; nesse caso específico, possibilitam até que
obras raras, que poderiam ter um destino final inglório, como a incineração, o
aterramento, e/ou ainda o reaproveitamento como papel de embrulho, e, por sua
iniciativa, acabam por cair em boas mãos, sendo incorporadas a outras bibliotecas
pessoais, até que a indesejada das gentes venha com uma nova ameaça de desova, literalmente,
separando o que se juntara por afinidade: bibliófilos e livros.
De certo modo, não se pode condenar,
de todo, a biblioclastia conjugal feminina, fruto notadamente de uma educação
literária capenga das tais matronas, concedendo-se atenuantes a essas “bibliocidas”,
porquanto, afinal de contas, tanto a constituição como a manutenção de uma
biblioteca consomem vastos recursos monetários que deixam de ser aplicados em
outras necessidades do provimento do lar. Ademais, persiste aquele espírito de
vingança: a leitura dos livros ocupava precioso tempo dos seus maridos,
subtraindo momentos da convivência familiar e do cuidar da prole, e, quiçá,
exercendo uma atroz concorrência na atenção de seus parceiros. Parece a velha
história de ser a biblioteca a “outra’, como se fosse uma amante “teúda e
manteúda”, interferindo na relação conjugal.
Por vezes, o despojamento dos livros
pode ser decorrente do imperativo da mudança de domicílio; nesses casos, a
perda do esposo traz a sensação de que a casa tornou-se muito grande, fato que
se alia à pressão imobiliária, ávida pelo terreno do imóvel para edificação
multifamiliar, fazendo com que a viúva decida mudar-se para um apartamento,
cujos cômodos não conseguem acomodar o acervo literário legado pelo provedor
desaparecido. Uma saída honrosa ou desculpa esfarrapada para justificar a perda
do lugar que os livros ocupavam nas estantes da casa e no coração do falecido.
Há também um aspecto subjetivo nessa
questão, de vez que, para algumas sobreviventes da dissolução conjugal, a
simples vista das estantes reaviva as lembranças do finado, que nem sempre foi
um marido exemplar, sendo vital, para a ruptura do luto da viuvez, que ditas obras,
encaradas como velharias, sejam erradicadas do seu campo visual, o mais rápido
possível. É aí que se aplica o provérbio, em inglês: out of sight, out of mind, ou, na versão portuguesa, “longe da
vista, longe do coração”.
Para os bibliófilos, que tanto amam
seus livros e temem um destino cruel reservado a esses tão caros amigos, há
duas possibilidades, ambas de caráter precaucional: a primeira, é ser egoísta,
anunciando e ameaçando a esposa de que voltará, nas madrugadas, para puxar-lhe
o hálux, caso ela dê fim ao seu patrimônio livresco; a segunda, é ser
altruísta, agindo com nobreza, deixando exarado, em testamento, que após o seu desenlace
final, evidentemente, a sua biblioteca pessoal seja doada e incorporada a uma
biblioteca mantida pelo poder público ou até outra, de livre acesso ao público,
como as pertencentes a entes associativos profissionais ou culturais.
Só assim ficaria garantida a
perpetuação do livro, tão mais duradouro do que a própria existência humana.
Da Academia Cearense de Medicina
Nenhum comentário:
Postar um comentário