quarta-feira, 12 de setembro de 2012

"Um Monte de Barata", crônica de Raymundo Netto para O POVO


Airton Monte (foto: Raymundo Netto)


Ao lado da minha cama, acostumei a guardar alguns livros, pois eu não consigo dormir sem ler pelo menos a um parágrafo de qualquer coisa. Mas não me detenho apenas num único livro, não; sou indisciplinado, leio o que primeiro vier. Entretanto, meus sonolentos ledores, aconselho, não leiam antes de dormir, coisas estranhas acontecem! E mais: não misturem livros, autores ou gêneros diferentes, pode ser “indigesto”. Eu, devido o mau hábito, passei por uma... Durante tal leitura, noite alta, senti a vista me faltar lentamente. Com pouco, comecei a ouvir uma voz arranhada, a gritar por mim, num canto perto da cômoda. Era uma barata. Uma barata falante, ou gritante. Dirigi-me a ela, com estranha intimidade:
— Gregor Samsa *?
— Que Gregor porrrrcaria nenhuma!, respondeu. — Está me estranhando, bicho? Sou eu, o Airton Monte!
E não é que era mesmo o Airton, gente! Olhando mais próximo, e com natural receio, reconheci, entre as seis patinhas trêmulas enleadas por fitinhas coloridas, uma cabeçorra encimada por um bonezinho donde saíam antenas. No rosto, os grandes óculos, a ausência de lábios e um escapulário de São Francisco no... pescoço!? Perguntei:
— Mas como isso foi acontecer com você, Airton?
— Eu sei lá, cara! A viagem é sua e você quer que eu lhe desenhe um mapa? — disse-me, soprando anéis de fumaça de um lasca-peito qualquer. — Logo eu, que elevei a crônica cearense ao patamar da literatura, estou aqui me sentindo como um inseto! Ah, o que o tesão da minha infância diria se me visse assim?
— Caramba, deve ser um tanto solitária a vida de barata, não?
— Solidão, para mim, nunca foi um grande problema. Antes uma unção, uma benção, uma maneira especial de estar no mundo sozinho com meus fantasmas prediletos, tirando férias do resto da humanidade...
— Que é isso, Airton, esse papo está ficando cascudo... — já estava me perguntando o porquê de, com tanta barata legal no mundo, foi-me aparecer por ali logo o Airton Monte. Ele continuou:
— Há dias assim, tão terrivelmente medíocres, que nem sequer inspiram a mais reles croniqueta! Que saudades de minhas voltinhas na Gentilândia, Benfica e no Jardim América...
— Mas você está se sentindo bem?
— Claro! Depois de 25 anos de tira-gosto de botequim, a gente fica imunizado contra qualquer vírus. Isso, sem deixar faltar, aos domingos, a macarronadinha com uma galinha à cabidela e um joguinho de futebol... — pôs-se, então, a rastejar-se nas paredes. Estava achando um barato esse negócio de ver o mundo de cabeça para baixo, suspenso no teto e coisa e tal:
— Raymundo, sabia que as baratas passam 75 % do dia dormindo, e que elas têm uma atração por bebida alcoólica, principalmente por cerveja? Sabia não... Boa esta vida de barata, meu irmão! He, he, he... Agora, veja só: eu, um cronista suburbano com ares de anarquista e com esse meu corpinho de bailarino espanhol, condenado a protagonizar o desvario de um cronista de segunda! — retraindo o abdome magro, encolheu as asas, tirou do dorso a caneta e um bloquinho de notas, cruzou as patinhas a pendular uma botinha preta e pôs-se a rabiscar:
— Para não perder meu tempo: como foi que tudo começou, Raymundo?
— Começou o quê?
— Essa sua vida besta... Fala sério, meu amigo, sua rotina é escatológica... Nem sei como você se aguenta! Além de, me perdoe, ser feio pacas! Você tem uma feiúra enciclopédica...
— Hã? — (à parte) — Meus amigos, só mesmo tendo sangue de barata!
— Liga, não! A vida acaba com qualquer um, bicho. Afinal, ao nascermos não assinamos contrato obrigatório com a felicidade... Não é só você, não. Essa coisa de ser camelô de si mesmo também me irrita. ‘Cê não sabe fazer outra coisa não, Raymundo. Pô, você é brabo, hein?
— Meu Deus, quanta filosofia barata, Airton!
— Engraçado, né? Por aqui, temos escritores que falam como se estivessem num palanque do Olimpo... Besteira! Escrever é apenas um ato consumado: ou se escreve bem ou ruim. Escrever é como desenhar, é só correr o risco e o bem-vindo alívio do ponto final.
Estava eu ali, entregue à barata, quando, súbito, a empregada, estranhando a conversaria noturna, entra no quarto. Horrorizada com aquela visão fabulosa e botafóguica, pôs-se a gritar atrás do pobre invertebrado sapecando-lhe uma vassoura. Tentei adverti-la que o deixasse em paz, que era um amigo, mas ela estava louca, completamente perturbada. O pobre do Airton, trêmulo e com uma fácies anêmicas laskeime, eriçou uns pêlinhos às costas e passou a gritar por sua amada guardiã:
— Sônia! Sônia! SÔNIA! SONHAAAAAAAAAAAA!
Sônia, sonha, sonhar... Acordei! Não, por favor, não leiam antes de dormir... nunca mais!

(*) Gregor Samsa é personagem de Metamorfose de Franz Kafka.
Airton Monte nasceu em Fortaleza, Ceará. Psiquiatra, poeta, contista, cronista do Jornal O POVO —  e marido da d. Sônia —,  iniciou-se na revista O Saco e foi um dos fundadores do grupo Siriará de Literatura. Lançou Moça com Flor na Boca (crônicas). Alguns dos textos da fala do Airton são adaptações de suas crônicas e entrevistas.

9 comentários:

  1. Como a gente falava antigamente: "um barato"! A sua leitura flui, mas o pensar fica agarradinho querendo mais. Um bom dia!

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    1. Bons dias, Fabreu... mas que história é essa de "antigamente", criatura? Logo nós? rsrsrsr Bjão.

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  2. PARABÉNS! É maravilhoso começar o dia lendo essa crônica.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Muito boa a crônica, sobretudo, o registo da voz do Airton Monte que é genial, refiro-me aos trechos inseridos das crônicas dele.

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  5. Nossa Raymundo essa crônica foi de lascar.. hahahaha Muito boa! Faz tempo que não rio com uma crônica boa. Acho que tem motivos pro Airton ter achado o "maior barato"!
    Mas o melhor foram os significantes do final...

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    1. Sabrina, se Deus quiser, em breve, reunirei essas minhas crônicas de encontros com escritores vivos, mortos, meio-vivos, meio-mortos e publicarei. Já estão na gaveta há muuuuito tempo.

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