Airton Monte (foto: Raymundo Netto)
Ao lado da minha cama, acostumei a guardar alguns
livros, pois eu não consigo dormir sem ler pelo menos a um parágrafo de
qualquer coisa. Mas não me detenho apenas num único livro, não; sou
indisciplinado, leio o que primeiro vier. Entretanto, meus sonolentos ledores, aconselho,
não leiam antes de dormir, coisas estranhas acontecem! E mais: não misturem
livros, autores ou gêneros diferentes, pode ser “indigesto”. Eu, devido o mau
hábito, passei por uma... Durante tal leitura, noite alta, senti a vista me
faltar lentamente. Com pouco, comecei a ouvir uma voz arranhada, a gritar por
mim, num canto perto da cômoda. Era uma barata. Uma barata falante, ou gritante.
Dirigi-me a ela, com estranha intimidade:
— Gregor Samsa *?
— Que Gregor porrrrcaria nenhuma!, respondeu. — Está
me estranhando, bicho? Sou eu, o Airton Monte!
E não é que era mesmo o Airton, gente! Olhando mais
próximo, e com natural receio, reconheci, entre as seis patinhas trêmulas enleadas
por fitinhas coloridas, uma cabeçorra encimada por um bonezinho donde saíam
antenas. No rosto, os grandes óculos, a ausência de lábios e um escapulário de
São Francisco no... pescoço!? Perguntei:
— Mas como isso foi acontecer com você, Airton?
— Eu sei lá, cara! A viagem é sua e você quer que eu lhe
desenhe um mapa? — disse-me, soprando anéis de fumaça de um lasca-peito
qualquer. — Logo eu, que elevei a crônica cearense ao patamar da literatura,
estou aqui me sentindo como um inseto! Ah, o que o tesão da minha infância
diria se me visse assim?
— Caramba, deve ser um tanto solitária a vida de
barata, não?
— Solidão, para mim, nunca foi um grande problema. Antes
uma unção, uma benção, uma maneira especial de estar no mundo sozinho com meus
fantasmas prediletos, tirando férias do resto da humanidade...
— Que é isso, Airton, esse papo está ficando
cascudo... — já estava me perguntando o porquê de, com tanta barata legal no
mundo, foi-me aparecer por ali logo o Airton Monte. Ele continuou:
— Há dias assim, tão terrivelmente medíocres, que nem
sequer inspiram a mais reles croniqueta! Que saudades de minhas voltinhas na
Gentilândia, Benfica e no Jardim América...
— Mas você está se sentindo bem?
— Claro! Depois de 25 anos de tira-gosto de botequim, a
gente fica imunizado contra qualquer vírus. Isso, sem deixar faltar, aos domingos,
a macarronadinha com uma galinha à cabidela e um joguinho de futebol... —
pôs-se, então, a rastejar-se nas paredes. Estava achando um barato esse negócio
de ver o mundo de cabeça para baixo, suspenso no teto e coisa e tal:
— Raymundo, sabia que as baratas passam 75 % do dia
dormindo, e que elas têm uma atração por bebida alcoólica, principalmente por cerveja?
Sabia não... Boa esta vida de barata, meu irmão! He, he, he... Agora, veja só: eu,
um cronista suburbano com ares de anarquista e com esse meu corpinho de
bailarino espanhol, condenado a protagonizar o desvario de um cronista de segunda! — retraindo o
abdome magro, encolheu as asas, tirou do dorso a caneta e um bloquinho de notas,
cruzou as patinhas a pendular uma botinha preta e pôs-se a rabiscar:
— Para não perder meu tempo: como foi que tudo
começou, Raymundo?
— Começou o quê?
— Essa sua vida besta... Fala sério, meu amigo, sua
rotina é escatológica... Nem sei como você se aguenta! Além de, me perdoe, ser
feio pacas! Você tem uma feiúra enciclopédica...
— Hã? — (à parte) — Meus amigos, só mesmo tendo sangue
de barata!
— Liga, não! A vida acaba com qualquer um, bicho.
Afinal, ao nascermos não assinamos contrato obrigatório com a felicidade... Não
é só você, não. Essa coisa de ser camelô de si mesmo também me irrita. ‘Cê não
sabe fazer outra coisa não, Raymundo. Pô, você é brabo, hein?
— Meu Deus, quanta filosofia barata, Airton!
— Engraçado, né? Por aqui, temos escritores que falam
como se estivessem num palanque do Olimpo... Besteira! Escrever é apenas um ato
consumado: ou se escreve bem ou ruim. Escrever é como desenhar, é só correr o
risco e o bem-vindo alívio do ponto final.
Estava eu ali, entregue à barata, quando, súbito, a
empregada, estranhando a conversaria noturna, entra no quarto. Horrorizada com
aquela visão fabulosa e botafóguica, pôs-se a gritar atrás do pobre invertebrado
sapecando-lhe uma vassoura. Tentei adverti-la que o deixasse em paz, que era um
amigo, mas ela estava louca, completamente perturbada. O pobre do Airton, trêmulo
e com uma fácies anêmicas laskeime,
eriçou uns pêlinhos às costas e passou a gritar por sua amada guardiã:
— Sônia! Sônia! SÔNIA! SONHAAAAAAAAAAAA!
Sônia, sonha, sonhar... Acordei! Não, por favor, não
leiam antes de dormir... nunca mais!
(*) Gregor Samsa é
personagem de Metamorfose de Franz Kafka.
Airton Monte nasceu em Fortaleza,
Ceará. Psiquiatra, poeta, contista, cronista do Jornal O POVO — e marido da d. Sônia —, iniciou-se na revista O Saco e foi um dos fundadores do grupo Siriará de Literatura. Lançou Moça com Flor na Boca (crônicas). Alguns dos textos da fala do Airton são
adaptações de suas crônicas e entrevistas.
Como a gente falava antigamente: "um barato"! A sua leitura flui, mas o pensar fica agarradinho querendo mais. Um bom dia!
ResponderExcluirBons dias, Fabreu... mas que história é essa de "antigamente", criatura? Logo nós? rsrsrsr Bjão.
ExcluirPARABÉNS! É maravilhoso começar o dia lendo essa crônica.
ResponderExcluirObrigado pela leitura, Margarida. Ótimos dias.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito boa a crônica, sobretudo, o registo da voz do Airton Monte que é genial, refiro-me aos trechos inseridos das crônicas dele.
ResponderExcluirRespondido no FB. Obrigado, Kelsen.
ExcluirNossa Raymundo essa crônica foi de lascar.. hahahaha Muito boa! Faz tempo que não rio com uma crônica boa. Acho que tem motivos pro Airton ter achado o "maior barato"!
ResponderExcluirMas o melhor foram os significantes do final...
Sabrina, se Deus quiser, em breve, reunirei essas minhas crônicas de encontros com escritores vivos, mortos, meio-vivos, meio-mortos e publicarei. Já estão na gaveta há muuuuito tempo.
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