domingo, 14 de fevereiro de 2021

"Artes & Ofícios", de Pedro Salgueiro para O POVO


Em nossa infância (na pequenina Tamboril dos anos 1970) vivíamos no Bairro das Pedrinhas, que era bem simples e no qual só existiam, quando lá chegamos, umas 7 famílias. Fomos morar numa ruazinha ao lado de 2 casais de tios; e, ao redor desse trio de casas sem cercas entre os quintais e um terreiro amplo que se estendia até os fundos de uma antiga maternidade, reinávamos quase 30 crianças (ainda hoje erramos a contagem dos muitos primos) entre brincadeiras, idas à escola General Sampaio e visitas diárias ao casarão dos avós maternos, que moravam no Centro.

O mais espantoso, visto da distância de hoje, é que essa multidão de meninos e meninas fora sustentada por pais muito pobres: um pedreiro, um ferreiro e um sapateiro, que mantinham sempre um roçado para ajudar na alimentação (sem falar nas sacrificadas mães, que tinham de dar conta de tudo no dia a dia dessa imensa legião): dos 10 filhos do pedreiro Luis Petronílio, apenas 1 perseverou na profissão do pai; dos 9 do ferreiro Zé Inácio, nenhum seguiu batendo ferro; e dos 6 do sapateiro Arimatéia Salgueiro, quem quis alisar sola que nem meu velho?

Essa antigas profissões têm sobrevivido a duras penas, quase não se encontra mais um ferreiro para confeccionar foices, enxadas ou armadores, isso tudo se compra nas casas de ferragens ou mesmo nos supermercados, como se não existisse mais a figura fuliginosa do mestre araponga. Ainda hoje guardo na memória o bater de ferro e o roncar do fole e o chispar do fogo da oficina do meu tio Zé (na mesma rua havia a oficina do mestre Toquinho); dos antigos sapateiros só tenho notícia do seu Zé Manela, ainda na ativa, e do artesão Anastácio Cícero (que, pelo adiantado da idade, já não trabalha), quando tudo que se calça é comprado (também como se fosse produzido por milagre) nas lojas, abstraindo a figura curvada dos nossos lambe-solas de antigamente, a exalar o delicioso cheiro dos couros, vaquetas e colas. Os pedreiros não, estes continuam firmes e fortes, aumentaram em número e qualidade, são disputados por todos para erguer e conservar casas e prédios comerciais.

Porém os ofícios que mais me encantavam quando menino eram os “carregadores d’água” em seus jumentinhos cheios de canecos de madeira dependurados em ganchos de ferros nas cangalhas escanchadas dos sofridos animais (quem da minha idade não se lembra de seu Dãêta, Izim e Quiza choteando atrás de cacimba boa pros lados do Cuandu?) e, também, a profissão rara (esta, sim, a que mais me impressionava) dos “espanadores de tetos” com suas vassouras de cabos compridos a tirar casas de aranhas, ninhos de pássaros e até cobras dos frechais altíssimos das velhas casas: recordo bem de seu Antônio Roseno varrendo ao contrário tesouras e cumeeiras do casarão do meu avô Chico Inácio; mas inesquecível mesmo era avistar seu Antônio Dino (mais conhecido como Sembereba), com seus quase 2 metros de altura, vindo lá das bandas do Papoco para espanar com seus vassourões gigantes os muitos casarios da cidade, parando em cada calçada para contar histórias mirabolantes, tiradas engraçadas, com seu vozeirão de gigante, no ombro um imenso capo de vassoura cuja ponta da frente já se encostava à parede do mercado e a de trás ainda vinha na Grota da Mijada, na entrada da rua.



 

6 comentários:

  1. Bom demais! Vivi, na condição de menino do campo, a mesma época. De todos os personagens, o ferreiro, o sapateiro e botador d'água são dos que mais lembro.

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  2. Bom demais! Vivi, na condição de menino do campo, a mesma época. De todos os personagens, o ferreiro, o sapateiro e botador d'água são dos que mais lembro.

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  3. Realmente, fomos vizinhos, eu o Dodô do ze Alípio, ali na praça onze.relembro bastante todo esse pessoal que vc citou nessa linda crônica, também tinha na praça onze o ferreiro seu Pepeu, os netos do seu Antonio Soares e outros... mas e gostoso lembrar que foi tempos bons com tao poucos recursos...abraço amigo...

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