segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

"Telhado de Vidro", de Raymundo Netto para O POVO


 “Meu amor, não é o que você está pensando...”

Essa afirmação tão ridícula quanto a outra de “nunca ter acontecido comigo antes” saiu da boca de um perplexo Aquiles quando descoberto em flagrante.

Era alta madrugada. Odisseia acordou e deu pela ausência do marido na cama. Estava ele num canto do quarto, olhar vidrado na tela do celular, mordendo os beiços com apetite, o que ela constatou pela luminância do aparelho em seu rosto.

Agora, Aquiles gaguejava, agarrado fortemente ao celular, enquanto a colérica mulher, fazendo uso dos poderes concedidos pela bíblica curiosidade feminina, o arrancava violentamente de suas mãos, para depois perceber, com inusitada frustração, que o objeto daquela atenção não era a suposta pornografia, mas, sim, apenas um gamezinho desses quase infantis. Mais inocente do que isso, só se estivesse embalando um nenê. Desconcertada e hesitante, ainda o menosprezou: “Um cabra velho desses, acordando de noite para ficar com joguinhos? Tenha vergonha, seja homem. Pensei que era mulher pelada!”

O marido, lenta e silenciosamente, escorregou pela colcha da cama, se enrolou com um pedaço de lençol permitido pela ofendida esposa – que ainda resmungava – e, em posição fetal, fechou os olhos e adormeceu.

Pela manhã, à mesa do café, Odisseia não perdoava. Ria-se, zombava de Aquiles, e dizia, balançando a caneca no ar: “Claro que você não pode ter disposição para trabalhar. Passa a noite agarrado a joguinhos eletrônicos... Vou te contar, viu?”

Um sábado, cumpria ela o ritual de suas tardes de salão de beleza, quando, na falta de assunto, desabafou com alguma graça e descontentamento aquela história para as amigas. Elas caçoaram do marido: “Como é bobo o Aquiles, gente...”.

Com pouco, no atávico confessionário das madeixas, as clientes começaram a dar pitaco na vida da Odisseia e, curiosamente, a revelar histórias, naquele contexto, engrandecedoras dos feitos de seus infiéis maridos que, ao contrário do abestalhado Aquiles, eram bem ousados. E não se restringiam à pornografia, ao sexo virtual, troca de nudes ou encontros às escuras, esses fetiches bem anos 90, mas à presencialidade da sem-vergonhice institucional mesmo, envolvendo casos de affair com belas e magérrimas mulheres, supostas viagens de negócios convertidas a férias conjugais em praias paradisíacas, as faturas intermináveis de cartões de crédito com penduricalhos às amantes, as escapadelas do serviço com a colega de trabalho para motéis – cumprindo a máxima “Antes de tarde, do que nunca” –,  os frequentes desaparecimentos, após um suspeito banho de colônia, em clubes de uísque, partidas de futebol ou de cartas com os “amigos” todas as sextas, a coleção de B.O.s por “roubo” de aliança e celulares, entre outros casos bizarros da mais pura sacanagem matrimonial.

Enquanto todas gargalhavam sob as escovas atentas dos pacientes cabelereiros, superiora, alguém ainda sentenciava: “Eu acho é bom. Assim ele me deixa em paz!”

Odisseia esboçava um sorriso de pose, mas estava pasma e, ao mesmo tempo, sentia-se humilhada, ali, no centro da arena das mais tórridas aventuras. Interrompeu o tratamento, “esquecera uma panela no fogo” e correu para casa. “O que as amigas pensariam dela?”

Qual não foi a sua surpresa, quando, ao entrar aos prantos no quarto, encontrou Aquiles com calcanhar e tudo no mais idílico pelo, agarrando os seios fartos e então ofegantes de Felicidade, a diarista. Assim, o marido saltou rapidamente aos pés da esposa, confirmando o seu tradicional script: “Meu amor, não é o que você está pensando...”

Odisseia rebentou um sorriso, colocou a bolsa novamente no ombro, deu meia-volta e saiu correndo ao salão para contar a novidade: “Eu acredito, amooor... Eu acreditooooo...”



11 comentários:

  1. Leitura com suspense e expectativa. Gostei demais

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  2. Gratíssimo, Malvinier. Depois dessa, não precisa ter medo de salão, tá? rsrsrs

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  3. Raymundo foi muito feliz:se há algo que tem seios fartos - fora a Fafá de Belém e a Jane Mansfield - é a diarista Felicidade e a própria felicidade.
    Temos aqui, para nos dá uma segunda feira risonha, uma comédia greco-brasileira deliciosa.

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  4. Raymundo foi muito feliz:se há algo que tem seios fartos - fora a Fafá de Belém e a Jane Mansfield - é a diarista Felicidade e a própria felicidade.
    Temos aqui, para nos dá uma segunda feira risonha, uma comédia greco-brasileira deliciosa.

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    1. Prof. Tião, essa serventia de acordar a segunda com humor, quando ela vem ou é possível, me agrada demais. A leitura gentil dos amigos mais ainda.

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  5. Penélope, Penélope, não sabes desta Odisseia como não soubeste da outra. Teu tempo era para tecer o dia a dia e destecê-lo noite a fio. Não havia salão de beleza, embora houvesse beleza; tampouco havia botequins. Nestes tempos que correm ( não para os mares), há salões e botequins onde, nestes a Martelladas, como naqueles a esmaltadas, são pintadas num arco-íris insuficiente as motivações que animam as Heras e os Zeus de agora. Procuradores de botequim e animadoras de salão, para nossa alegria de cada dia, existe Homero, não em Berlim, mas em Fortaleza. Adorei, Raymundo Netto. Nem o fundo da busceta de Pandora é tão fundo, nem no fundo do baú do Raul há esperança de uma mosca no bacalhau dos generais, mas há muita graça na Felicidade da Odisseia. E Aquiles que mame e Pátroclo que reclame.

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    1. Hahaha Seu retorno é uma crônica à parte, Armando Lucas. Grato.

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  6. Raymundo, essa mulher que ficcionou tem sérios desvios.nao se pode dizer o mesmo da crônica, excelente, suspense, comicidade, um tema q deixa a curiosidade fluir. um abraço

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    1. Hahaha Como o nome já diz, Lucirene: Odisseia! Uma quilometragem de léguas tiranas, prato cheio para análise. Obrigado.

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