Publicado originalmente em O POVO em 2008
Conversando com um amigo, lá de Limoeiro, sobre o
interesse na abertura de um novo segmento de negócios na cidade, sugeriu-me um
que acreditava ser bastante promissor e original: uma fofocaria!
Nunca havia pensado
nisso... Abrir uma fofocaria no centro de Fortaleza, talvez fosse mesmo um bom
investimento. Digo no Centro, mas bem sei que há espaço para rápida expansão de
franquias em shoppings, igrejas,
clubes, lans e nas academias... de
ginástica, obviamente.
Receoso, decidi consultar
o Raimundo de Menezes, também cronista, profundo conhecedor da gente e dos
costumes da cidade, para saber o que ele achava do empreendimento. Ele,
arranhando o rosto redondo com certa ansiedade, disse-me que a fofoca era uma
das coisas que o tempo não levou, e que se eu quisesse consultar um
profissional gabaritado a respeito, me indicaria o João da Silva Tavares,
segundo ele, o primeiro mexeriqueiro de Fortaleza! Fiquei impressionado: este
senhor, de tão longevo, deveria ser um hors-concours
da fofoca.
Até então, eu sabia que o
primeiro fofoqueiro do mundo havia sido o Adão, que, aliás, era cearense, e que
tinha se arribado para as bandas do Paraíso em busca de fazer dinheiro, porque
todos sabem que, aqui no Ceará, não tem disso não, não tem disso não...
Tavares era mestre em Gramática Latina
(um letrado, felizmente) e era temido por quem tivesse rabo de palha. Conforme
o Raimundo contou, se a pessoa lhe caísse em desagrado, mesmo que esta não
tivesse defeitos, ele os inventava, e o fazia com tal excelência que, rapidamente,
a intriga era distribuída em forma de picuinhas e difamações. O seu exercício
inventivo e belicoso de “mexeriqueiro, enredador e perturbador público” era até
reconhecido oficialmente pela Câmara de Vereadores, vítima-mor da língua
espinhenta, embora, por vezes, é claro, com muita justiça...
O mexeriqueiro nos recebeu
todo orgulhoso. Veio logo distribuindo algumas crias novas e, interessado no
negócio, passou-me algumas dicas que eu tratei de tomar nota com atenção:
— Óquei, óquei, Raymundo,
você está certo, existe mesmo uma grande oferta e procura de nosso produto. A
fofoca, nesse mundo globalizado, tem uma velocidade de propagação imensa e,
para se potencializar esse efeito, é fácil, basta apenas anunciar ao
intrigante: “Só falei porque é para você, mas é segredo”. É batata! Pode contar
que já, já, sua fofoca volta até você.
Disse-nos mais: que o
verdadeiro artesão da fofoca era tão desprendido que, além de não assinar a
obra, não confessava sua autoria nem sob tortura! Era sempre assim: me disseram,
me falaram, alguém contou... Estava ele até chateado com o injusto estigma que
sua profissão lhe conferia. Acreditava ser mais apropriado, ao invés de fofoca,
falar-se em “comunicação social”.
Sobre o imóvel da
fofocaria, insistia que as suas paredes tinham que — para facilitar o insight visual — ser de vidro; mas o
telhado, ao contrário, nunca!
Aconselhou-me montar o
negócio diante de uma praça, para facilitar o fluxo de profissionais, e que
poderíamos, inclusive, vender uns cafezinhos, pãezinhos, doces, coisas leves
como numa casa de merenda, pois o bom ficcionista (assim ele também se
denominava) não pode perder muito tempo mastigando, bem sabido que seu
instrumento de trabalho é a boca.
— Mas não podemos querer
que todos venham à fofocaria. Pelo menos, não ao mesmo tempo, pois se todos
estiverem lá, não teremos de quem falar, não é verdade? O ausente é também um
grande colaborador em nosso negócio!
Sugeriu a criação de um menu de fofocas onde as pessoas escolheriam
e encomendariam a produção. Dentre os tipos de fofoca, teríamos a
fofoca-alcunha, um produto mais caro, pois além da fofoca em si, a vítima
também ganharia um apelido que o perseguiria pelo resto da vida.
Eu já estava entusiasmado
com tantas ideias quando, de repente, percebi sua face transformar-se: acima do
olhar meio de banda, a testa franzida, enquanto cofiava a barba mal-feita.
Passou a perguntar-me o que eu fazia, onde morava, meu estado civil... Nem sei
por que, mas senti um frio na espinha e a orelha a esquentar. Olhei para o
Raimundo que, com os ombros encolhidos e os cabelos em pé por sobre o rosto
corado, pôs-se a assobiar. Respondi ao curioso:
— Sinto muito, Tavares,
mas a editora do jornal me disse que o texto da crônica não poderia mais passar
de cinquenta linhas... Infelizmente, acabou... Uuuufa!
Raimundo de Menezes (1903 – 1984) cearense, biógrafo,
dicionarista (Dicionário
Literário Brasileiro) e cronista
histórico, autor de Coisas que o Tempo Levou (edições Demócrito Rocha) e outros, foi também dedicado presidente
(sete gestões) da União Brasileira de Escritores/UBE.
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