segunda-feira, 24 de março de 2014

"A Praça é do Povo", de Ana Miranda para O POVO (23.03)


Alguns dos meus caminhos passam por ali, e quando avisto a praça Portugal, com sua pequena paisagem verde, um dos poucos lugares na cidade em que um jardim vive em paz, entre as nossas correrias de carro, quando a avisto, já de longe sinto um bem-estar, como se tivesse acabado de atravessar um deserto, chegando a um pequeno oásis. É uma coisa boa que está ali, impregnada ainda de outros tempos. Sinto ternura pela praça Portugal, talvez seja o único lugar da cidade em que os carros não dominam, eles precisam parar um pouco, fazer uma curva, respeitar e render-se à área verde. 
Ela me faz lembrar uma conversa que tive com o arquiteto Ruy Ohtake. Ele projetou uma escada que fazia uma curva perto da vidraça, era uma curva desnecessária, a escada reta permitiria uma subida ou descida mais rápida. E ele disse que aquela curva era para que a pessoa, ao subir ou descer a escada, passasse os olhos pela paisagem, a curva da escada propunha um instante de beleza, descoberta, amplitude da visão. Amor pela cidade. Um instante de descanso e bem-estar. Assim como a curva em torno de um jardim, que fica num cruzamento de ruas. Que boa ideia seria então fazer uma praça ajardinada a cada grande cruzamento... 
Mas ninguém tem mais tempo a perder, o bem-estar não importa, a saúde mental, a paz, o devaneio... coisas do passado, ou coisas do futuro, não dos tempos presentes em Fortaleza. O caminho precisa se abrir à pressa da cidade, do carro, chamado de “a peste do século”. Nesse sentido, a ideia de cortar a praça em quatro, tornando-a mais acessível aos pedestres, é a solução ideal. Seriam quatro pracinhas quadrangulares, em que predomina o cimento. 
O projeto das quatro praças é acima de tudo chão pavimentado, em que aparecem umas pequenas árvores isoladas e cercadas de chão, como ilhas, e filas de bancos expostos ao sol ardente. Visto de cima, dá a ideia de um sol quadrado de asfalto com raios de cimento. O sol fica sendo a ausência da antiga praça, e o centro de tudo será um cruzamento de ruas repleto de carros ora num sentido ora no outro, todo em asfalto. Querem tirar até os canteiros da Dom Luís, para abrir mais uma via expressa. Os pedestres vão precisar atravessar uma rodovia de cinco pistas em plena cidade. A nova velocidade dos carros vai significar mais atropelamentos. Para atravessar as vias, o pedestre vai precisar ir até o centro das novas praças. O rumor da via larga vai piorar a sonoridade do local. O calor vai aumentar. O sol na cabeça vai aumentar. Tudo vai piorar. Menos o trânsito. A ideia sempre é dar passagem aos carros, eles precisam seguir em sua devastação fumacenta e metálica. As rodovias entram pela cidade, e cada vez mais os moradores habitam uma árida beira de autoestrada.
Entendo a posição delicada da engenharia de trânsito, cada morador reclama dos engarrafamentos, mesmo aqueles que possuem cinco carros numa família de cinco pessoas, e ela quer resolver o problema. Mas o nó da cidade precisa ser entendido com uma visão menos obsoleta. Estão transformando Fortaleza naquela São Paulo dos anos sessenta, e que agora gastam rios de dinheiro para humanizar. Para mim tudo isso soa como se le maire de Paris cortasse a praça do Arco do Triunfo em quatro, para melhorar o trânsito. Adeus orgulho da pátria, adeus Napoleão, adeus triunfo, adeus Paris antiga... Adeus Portugal, canteiro de árvores, arcos, jardins... Adeus passado, tradição, amor pela cidade, ternura... Adeus praças... Minha amiga arquiteta tem um estudo das praças, em que mostra como foram se transformando em prédios de repartições públicas. Mais uma praça se vai? 

Uma das raízes do problema é uma prefeitura sem Departamento de Parques e Jardins. Aqui, quem cuida das praças são os pobres garis, treinados apenas para limpar, cortar a grama se houver, e aguar. Em todas as cidades nas quais vivi, e nas que visitei, existe um setor que cuida de parques e jardins, com muita força política e de atuação, e isso cria uma proteção para os parques, praças e jardins que já existem, além de criar novos espaços verdes para as cidades. As engenharias de trânsito trabalham junto com parques e jardins. Fortaleza não tem, que eu saiba. O poder sobre a paisagem da cidade tem sido entregue a uma engenharia de trânsito, que age com a filosofia do asfalto. Que tal deixar a praça Portugal em paz, e criar quatro lindas praças arborizadas, com brinquedos, em quatro periferias da cidade onde não existe nenhuma?

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