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Em pé, da esquerda para direita: Filgueiras Lima, Mário de Andrade (do Norte),
não-identificado e Martins D'Alvarez;
Sentados, da esquerda para direita: Paulo Sarasate, Suzana de Alencar Guimarães,
Raul Bopp (autor de Cobra Norato, em visita a Fortaleza no final da década de 1920),
Demócrito Rocha e Silveira Filho. (Foto: Arquivo Nirez)
O Modernismo em Demócrito Rocha
“Saudade
que ainda espera,/ É lembrança./
Saudade
só é saudade,/Quando não resta esperança.” (Demócrito Rocha)
Já vimos que o jovem Demócrito Rocha
saíra de seu berço natal, a pequena aldeia de Caravelas da Bahia, e dirigiu-se
a Aracaju, em 1907, onde, por meio da tia, ingressaria em melhores escolas, dentre
elas, o Ateneu Sergipano, onde
lecionava o latinista Brício Cardoso. Por intermédio de Jackson de Figueiredo,
um admirador do cearense Farias Brito, foi apresentado à Filosofia e a
Literatura.[1] Também foi em Aracaju que conheceu
o Esperanto, paixão a carregar pela vida inteira — integrou o Esperanto Klubo-Cearense, primeiro clube
esperantista do Ceará, escrevia para o jornal Nova Mondo (1923) e, na fase final de sua vida, lia a Bíblia no
idioma artificial de Zamenhof[2]. A
partir dos benefícios proporcionados pela fluência da “língua universal”, tomou
gosto pela Filatelia — no futuro, introduziria uma coluna sobre selos em O POVO
—, e comunicava-se com diversos países, atualizando-se dos fatos antes de
muitos de seu tempo.
Já casado, suas filhas estudavam no
Colégio da Imaculada Conceição, onde, por um período, foram alunas de Rachel de
Queiroz, paciente do dr. Demócrito, o dentista, além de amiga e companheira de
movimento literário e futura — eterna — colaboradora do seu jornal. Aconselhado
por Lourenço Filho, na época redimensionando o ensino público estadual,
colocou-as na Escola Normal, a contragosto da esposa, Creusa.
Em casa, gostava de ouvir música
brasileira e clássica, por meio de seu gramofone, lia de tudo, não descuidando
de tomar as tarefas das filhas Albanisa e Lúcia. Ao contrário do jornalista
rigoroso e combativo, em casa e com os amigos, Demócrito era brincalhão, alegre
e irreverente[3]. Num baile de carnaval do
Clube Diários, por exemplo, não tendo uma fantasia, enrolou-se numa bandeira
nacional e foi à folia. Em sua casa, nunca almoçava sozinho. Ao chegar mais
tarde, convidava até os vizinhos para o acompanharem. Da mesma forma, era
frequente proseador nos quiosques, restaurantes, bancos de praça e cafés da
cidade (dentre eles o Java, onde se conjeturou a criação da Padaria Espiritual,
e os do Passeio Público).
Em 1924, na sua revista Ceará Ilustrado, criou o concurso de
eleição do “Príncipe dos Poetas Cearenses”, cujo eleito foi o Padre Antônio
Tomás. Em 1963, 22 anos após a morte do padre, e 20 da de Demócrito, nova
eleição realizada, a vitória foi de Cruz Filho. Em 1974, Jáder de Carvalho, e,
com o falecimento deste, em 1985, foi eleito o atual príncipe, o pacatubano
Artur Eduardo Benevides.
Em 1928, Demócrito lançou O POVO!
Afirmou Rachel de Queiroz, mais tarde: “Acho que nunca, em Fortaleza, um jornal
novo tivera êxito assim fulminante. E O POVO era Demócrito, Demócrito que o
fazia todo, com a ajuda entusiástica e solitária de Paulo Sarasate.[4]”.
De fato, O POVO, ao contrário dos dias atuais, surgia em meio a diversos
jornais concorrentes, mas rapidamente firmou-se, sendo hoje, dentre eles, o
único existente. A sua sede situava-se num sobradinho na praça dos Leões, o de
número 158. A tiragem, a 200 réis o exemplar, rapidamente se esgotava. O
motivo, todos sabiam, a coluna de Demócrito, “Nota”, continuação do sucesso de
sua também “Nota do Dia”, que escrevia anteriormente em O Ceará, jornal de Ibiapina. Mais tarde, assinando como “Barão de
Almofala”, pseudônimo usado na época de O
Ceará, abriu a coluna de Grafologia de O POVO, que fez grande sucesso entre
leitores.
E mais: Demócrito, conhecedor de
todos os escritores cearenses da época, tentou uni-los como pôde,
democraticamente, tanto os “modernistas e passadistas”, mesmo os que residiam
fora do estado, como Edigar de Alencar, fazendo de sua folha não apenas o
espaço da notícia, da denúncia, mas da beleza, da vida e arte. Ele, inclusive,
poeta e admirado por tantos, escrevia, mas sob o pseudônimo de “Antônio
Garrido”. E esse Demócrito criava enquetes com entrevistas de escritores, abria
colunas literárias, relacionava-se com o modernismo de São Paulo e Rio de
Janeiro — “para nós, então, as duas metades inacessíveis do Paraíso”, conforme
Rachel de Queiroz — e promovia a literatura do Ceará. Manifestava: “O
modernismo que eu entendo é esse que nós fazemos: modernismo nacional, saturado
de tudo quanto é nosso, original, sugestivo, impressionante... Querem saber? Se
eu continuasse a dizer o que penso do modernismo não acabaria mais”. Tudo isso
fez com que Filgueiras Lima decretasse: “Demócrito tornou-se, em pouco, a
coluna mestra do modernismo no Ceará”. E é verdade.
Não bastasse a inquietação que trazia
em seu jornal, Demócrito criou o Maracajá,
“suplemento literário de O POVO” que, embora tenha saído apenas em dois
números, teve “[...] atuação decisiva e, porventura, espetaculosa,
sensacional...”, como lembra Filgueiras. Tão atuante era a presença cearense nos
primeiros anos do modernismo, que alguns dos textos publicados em Maracajá foram reproduzidos na famosa Revista de Antropofagia, dentre os quais
“A Matança dos Inocentes”, de Demócrito Rocha. Importante destacar que os editores
paulistas suprimiram o final de seu texto em que criticava o modernismo de
“lá”: “Eles metem excessiva erudição no que fazem. E bancam sisudez. Nós
[escritores de ‘cá’] somos alegres por índole. Em São Paulo, os rapazes para
fazer a sua antropofagia precisam dar o laço à gravata.” Assim, além de outros,
o Diário da Tarde, de Curitiba, em 2
de julho de 1929, dizia que Antônio Garrido [Demócrito], Paulo Sarasate e Mário
de Andrade [do Norte] “são os construtores libérrimos do Ceará intelectual de
hoje”.
O reconhecimento ao jornalista e poeta
Demócrito Rocha, além de ao seu jornal, vinha de todos os lados. Henriqueta
Galeno, filha do poeta Juvenal, a primeira e maior feminista cearense [uma das
primeiras defensoras do divórcio no Brasil], criadora da Casa de Juvenal Galeno
— durante décadas a Casa foi o maior e mais legítimo centro cultural cearense,
hoje ainda resistindo em beleza e em ideal, mas desconhecida e/ou negligenciada
por parte da ignorância cultural dos filhos da terra ou pela soberba da
erudição palaciana —, em sua viagem ao Rio de Janeiro, em 1931, apresentava, em
diversas conferências, O POVO, “um dos mais valiosos jornais da minha terra”
[que contribuía para o ideal feminista já naqueles tempos[5]],
e, dentre outros intelectuais, “Demócrito Rocha, legítima e brilhante expressão
jornalística, orador vibrante e fecundo”.
E foi ali, na Casa de Juvenal Galeno,
em 5 de setembro de 1930, que Demócrito deixou no álbum de visitas de Henriqueta
manuscrito inédito do poema “Rio Mar”, assinando, como de costume, “Antônio
Garrido”:
Veio
das catadupas* do dilúvio universal
Veio
dos planetas que se fundiram
ao
calor das forjas de todos os Sóis...
Veio
do orvalho caído de todas as folhas
nas
grandiosas matas sul-americanas...
Foi a
cordilheira dos Andes que se desmanchou
em água
e entrou desvairada pelo Oceano...
Rio!
— umbigo do mar que nasce
do
ventre fecundo da Terra Brasileira,
bebendo-lhe
o sangue virgem
na
formidável placenta da Amazônia...**
(*)
imensas quedas dágua
(**)
Atualizamos a ortografia.
Em 7 de janeiro de 1929, escreve Demócrito:
“Apareceu por aqui [na redação de O POVO], com vontade de ajudar-me, um
estudante de Direito, de pouco mais de 20 anos de idade. Paulo Sarasate é o seu
nome[6]. O
jovem já tem experiência em revista, já andou preso, com Perboyre e Silva e
Plácido Castelo. Vou dar-lhe o cargo de redator-secretário.”[7]
O POVO se fortalece. Quer saber como?
Daqui a 15 dias tem mais.
[1] Jackson de Figueiredo saiu
de Aracaju para estudar Direito na Bahia. Anos mais tarde, num acidente,
morreria afogado.
[2] Em 11 de dezembro de 1955
foi fundado o Esperanto Klubo Demócrito
Rocha, em sua homenagem.
[3] Traços de União, da (sempre) jovem Adísia Sá, explora o lado
familiar de Demócrito Rocha.
[4] Muitas
das informações sobre o modernismo no Ceará e a ação de Demócrito Rocha, aqui
indicadas, podem ser encontradas em O
Modernismo na Poesia Cearense: primeiros tempos, de Sânzio de Azevedo,
pelas Edições Demócrito Rocha, 2012, que traz, anexas, as duas edições
fac-similares de Maracajá.
[5] Creusa do Carmo Rocha,
esposa de Demócrito, foi a primeira mulher a votar no Ceará.
[6] Paulo era filho do maestro
Henrique Jorge, músico, um dos membros da Padaria Espiritual.
[7] Memória de um Jornal, de José Raymundo Costa.
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