"Demócrito Rocha", acervo de Lúcia Dummar.
Eis que surge: Demócrito Rocha!
“O jornal é como o vinho: quanto mais velho, melhor e mais generoso.
O POVO não pode ocultar o prazer de seus
redatores, neste dia de seu primeiro aniversário.
Quando ele tiver uma centena de
anos... Está bem.
Mas isto fica para os nossos netos,
para os tempos ditosos, quando
houver crescido a árvore que nós
plantamos...”
(Demócrito
Rocha, em 7 de janeiro de 1929, no editorial que celebrava o primeiro
ano de O POVO)
Demócrito Rocha
nasceu baiano de Caravelas, aos 14 de abril de 1888. Perdeu os pais, João e
Maria da Glória — o pai, aos dois; a mãe, aos cinco anos —, sendo ele e o único
irmão, Heráclito, criados pela avó Ana numa família de poucos recursos. Menino,
aos 12 anos, trabalhava de torneiro na oficina da estrada de ferro, 9 horas por
dia, folga nos domingos. Aos 19 anos, moraria em Aracaju, onde uma tia lhe oferecia
melhores condições — estudou no Ateneu Sergipano e no Colégio Americano. Três
anos mais tarde, ingressaria na Escola de Odontologia. Devido à condição
financeira, e passando em concurso público para telegrafista, largou a
Faculdade e transferiu-se para Fortaleza, em 1º de fevereiro de 1912 (1), indo
morar numa pensão. No Passeio Público viu, pela primeira vez, Creusa do Carmo
(9 anos mais jovem) e, seis meses depois, em 9 de fevereiro de 1915,
casaram-se. Em agosto, em plena famigerada seca, o casal se dirigiu ao Iguatu,
retornando a Fortaleza durante gravidez de Creusa. Maria Albanisa, a primeira
filha — futura Sra. Paulo Sarasate —, nasceu em 1916, e, em 1917, de sete
meses, Maria Lúcia, a caçula — que após a morte do pai casaria com João Dummar,
o pioneiro do rádio no Ceará. Em 1921, após longo hiato, concluiu Odontologia,
na 2ª turma do Ceará, assumindo, já no ano seguinte, disciplina na Faculdade de
Farmácia e Odontologia. Em 1922 sofreria sua primeira grande perseguição
política, sendo acudido pelo Arcebispo D. Manoel e Antônio Sales.
Mesmo
atuando como dentista em seu consultório, professor na Faculdade e telegrafista
para os Correios e Telégrafos, Demócrito era irrequieto, e em 1924, após ouvir
Otacílio de Azevedo e Orlando Luna Freire, iniciou a publicação da revista Ceará Ilustrado. Segundo Otacílio (2),
“Demócrito sacrificava parte da verba auferida com o seu trabalho no
consultório e aplicava-o, com a maior boa vontade, na revista. Era de vê-lo,
então, feliz, [ele próprio] fazendo a distribuição da revista nos quiosques da
praça do Ferreira”. Foi na Ceará...
que ele criou o concurso de escolha do “Príncipe dos Poetas Cearenses”, no qual
foi eleito o Padre Antônio Tomaz.
No ano
seguinte, Matos Ibiapina fundou o jornal O
Ceará, opositor do governo, e convidou Demócrito como Diretor Literário,
sendo frequente colaborador com a coluna “Nota do Dia”, na qual assinava “DR”. Neste
ano, torna-se um dos fundadores da Associação Cearense de Imprensa, a ACI. Na
época, mantinha seu gabinete dentário, mas montou outro, próximo à igreja do
Patrocínio, exclusivamente para atender aos mais pobres.
Em março de
1927 fundou o Partido da Mocidade, juntamente com Jáder de Carvalho, Plácido
Castelo, Alfeu Aboim, dentre outros, onde combatia ao latifúndio e exigia a
fiscalização das eleições, a moralização do voto e a arregimentação dos
operários em forte núcleo eleitoral, dentre outros princípios. Em junho do
mesmo ano, após ameaças constantes e perseguições denunciadas em O Ceará, é espancado barbaramente por
doze policiais em praça pública, promovendo uma onda de protestos por toda cidade,
recebendo apoio da imprensa brasileira.
Em 7 de
janeiro de 1928 fundaria O POVO, “o jornal das multidões”. Em agosto, Demócrito,
que era simpatizante de Prestes, manifestou-se abertamente, no Theatro José de
Alencar, contra o presidente Moreirinha, comparando-o a um mucuim (um inseto
cuja picada causa dor e coceiras), durante a visita da Caravana Democrática de
Assis Brasil (3).
Em 1929, O
POVO lançou a revista Maracajá,
veículo de elevada importância na inauguração e promoção do Modernismo do
Ceará. Também em ‘29, um grande risco para economia mundial e, por
consequência, para a empresa O POVO: o “crack” da Bolsa de Valores de Nova York.
Mas, ao contrário do que muitos esperavam (outros, incomodados, torciam), o
jornal cresceu ainda mais, adquirindo moderno equipamento da Alemanha e
mudando-se, no ano seguinte, para novo prédio, na Major Facundo.
Em 1930, ano
em que, considerado “subversivo”, se refugiou em esconderijo onde se comunicava
com o resto do país por meio de código Morse, ingressou na Academia Cearense de
Letras. Após a vitória do movimento de 30, foi convidado para assumir cargo no
governo, o que recusou. Quatro anos mais tarde, elegeu-se deputado federal. Transferiu-se
para a capital brasileira, o Rio de Janeiro, de onde enviava manuscrita a
coluna “Ceará... de Longe”, na qual defendia a modernização do estado e a
fiscalização do uso dos recursos públicos. Em 1937, veio de férias ao Ceará.
Está enfermo e descobre a causa: tuberculose. Mesmo assim, retorna ao Rio. Porém,
Getúlio Vargas fechou o Congresso, o que o fez voltar, definitivamente, ao
Ceará, quando passou a criticar a Ditadura Vargas — O POVO teve suas matérias
censuradas inúmeras vezes, em parte ou na íntegra — e a combater o avanço dos
ideais integralistas. Mudou-se de casa mais uma vez, a última, e passou a
residir na “casa do cajueiro torto”, na Gentilândia.
Em 1943, no
mesmo ano em que tomou posse no Instituto do Ceará; em que comemorava o
progresso e crescimento de O POVO — em seus 15 anos — e a
leitura de algumas de suas crônicas sobre a Segunda Grande Guerra pela BBC de
Londres, foi em 29 de novembro, às 18h, que a doença lhe tomou o ar para
sempre.
Demócrito
tinha alma de poeta de “chamejante pena”(4), tão liberto e desprendido, que,
mesmo com todas as funções que atendeu em vida, com todo prestígio que dela
gozou, nunca preocupou-se em ter uma casa própria ou sequer publicar único
livro. Sabia reconhecer a inteligência e o talento, promovia-os, criava,
exalava ideias, homem de multidões, fiel aos amigos, democrático — a ponto de
saudar o surgimento de jornais concorrentes —, quem sabe um dos pioneiros do
marketing cearense, maior promotor da interação leitor-jornal.
Um dia, em
1934, Assis Chateubriand propôs negócio: compraria O POVO. Demócrito respondeu
com a pergunta: “Venderia um filho?” Diante da negativa de Chatô, sorriu e
disse: “Eu também não. O POVO é meu filho!” (5) Atitude poética pura. E é desse
Demócrito Rocha, o poeta, o boêmio, o construtor de sonhos que falaremos mais
daqui a 15 dias.
1. Afirmação do próprio
Demócrito, publicada por Paulo Sarasate. Edmar Morel (10.9.12) e Padre Misael
Gomes (01.09.12) conflitam sobre a verdadeira data.
2. Otacílio de Azevedo em Fortaleza Descalça, 3ª ed. Fortaleza,
SECULT, 2011.
3. Daniel Carneiro Job em Praça do Ferreira, 2ª ed, 1992.
4. Raimundo Girão em Fortaleza e a Crônica Histórica, Ed.
UFC, 2000.
5. Adísia Sá, em Traços de União, EDR, 1999.
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