"Rubem Braga", por J. Bosco
Na crônica Lucíola era assim, sentimos quão
importante é a leitura do texto por prazer - esse sorriso que transborda para o
interior e preenche todos os poros e recantos mais íntimos de nosso corpo e, surpresos,
deparamo-nos com algo que, inconsciente e insistentemente, procurávamos como
necessidade vital!
O Rubem Braga não deixa por menos, ao iniciar sua crônica com
esse irônico e delicioso parágrafo: “E de repente nos lembramos das damas
antigas dos velhos romances: como guardavam coisas nos seios! Dali tiravam o
punhal, a flor, o veneno, maços de cartas fatais, lenços... Ah, é talvez por
isto que as mulheres de hoje perderam tanto de seu mistério! Levam apenas o
revólver na bolsa, e nada mais”. E mais adiante: “E nem ao menos desmaiam mais,
essas senhoras de hoje. Quando o fazem é apenas por mau estado de saúde.
Antigamente, o desmaio era um gesto, uma atitude, um recurso normal de mímica;
quase fazia parte da conversação. Não que fossem falsos desmaios. Não; eram
sinceros e naturais. As moças aprendiam a desmaiar como a tocar piano, a
bordar, a falar francês. Era uma prenda doméstica”.
O cronista formula, com maestria, um resumo perspicaz de
gestos e atitudes que caracterizavam aquela sociedade feminina do século XIX em
confronto com as pálidas “senhoras de hoje”. Volta a uma época em que o
discurso sofria uma série de interdições morais, éticas e religiosas e o mundo
da mulher era apreendido mais nas entrelinhas: olhares sinuosos, palavras
sussurradas, recados e bilhetes escondidos, enfim, uma série de estratégias
desenvolvidas para que a mocinha, tão vigiada, tivesse a chance de enviar algum
sinal ao seu amado. Por causa dessas vias indiretas, aconteciam os
mal-entendidos e impedimentos que culminavam em constantes brigas dos casais:
nesses casos, os lencinhos molhados de lágrimas constituíam recursos infalíveis
para a reconciliação.
Mas Lucíola não era
uma pobre mulher frágil; ao contrário, era a mais poderosa cortesã do Império,
“a sultana de ouro”, como dizia Alencar, e acrescenta Rubem Braga: “Se quiserem
o nome todo direi que não sei; apenas posso informar que ela não tem telefone.
Seu último endereço era em Santa Teresa. Notícias suas os interessados podem
obter lendo o romance de José de Alencar”.
Deparamo-nos com uma mulher-mito de sensualidade e de luxúria,
na Corte fluminense: “...havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes
das narinas que tremiam...”, “...arqueava, enfunando a rija carnação de um colo
soberbo, e traindo as ondulações felinas num espreguiçamento voluptuoso...”,
“...as tranças luxuriosas dos cabelos negros rolaram pelos ombros...”, “...uma
nuvem de rendas e cambraias abateu-se a seus pés...”
Mas na concepção moral do romancista Alencar, essa condição
atual de cortesã era terrível consequência de uma situação infeliz na infância
da protagonista: a mulher, vítimizada pelo destino, traz ainda, em sua alma,
“uma dignidade meiga e nobre” – presságio de que recobrará, no final do
romance, a pureza de alma, apenas velada pelas circunstâncias existenciais.
Nada se compara à sedução dessa personagem – eco de outras
famosas personagens da literatura francesa – no imaginário masculino traduzido
por Rubem Braga. Mas o que impressiona verdadeiramente o cronista é a
personalidade camaleônica de Lucíola,
uma vez que se metamorfoseia, sem cessar, segundo humores e ocasiões,
demonstrando inesgotável versatilidade: “o leitor também a verá lívida, ou a
gargalhar, ou caída em profunda distração, ou titilante de heroína e sarcasmo,
ou ébria de champanha e coroada de verbenas...”
Captar a beleza desse romântico livro com tamanha percepção
estética, permeada de boa dose de leveza e bom-humor, nos deixa com saudade de
uma época não vivida, plena de possibilidades, encantamentos, mistérios e
seduções.
Não, não se fazem mais cronistas como antigamente...
Nenhum comentário:
Postar um comentário