O jornalista Lustosa da Costa
Finalmente!
Estava já incomodado com a equívoca ideia que imprimi ao Lustosa da Costa de
que não aceitava-lhe a companhia para almoço, repetidas foram as recusas
involuntárias justificadas sempre à imprevisível agenda de escravo branco.
Marcamos
o encontro no Centro, é claro, e fiel aos bons costumes, pensava em almoçarmos no
L’Escale, restaurante de vista
patrimônica, um dos poucos em que se pode sentir nos pés os luminosos estalos de
soalhos tabuados. Entretanto, ao transpor a lateral do corredor da sacristia da
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, gritos desesperados nos tomaram reparo:
—
Tirem-me daqui, vamos! Quero sair... Exijo! Sou Comandante do Batalhão dos
Nobres... Abram! Abraaaam!!!
Entreolhamo-nos
e, curioso, Lustosa entrou com vagar na igreja, dando de cara com o Paulinho, agente
pastoral, que girava de maneiras de peão a coçar a cabeça confusa.
—
Que é que está acontecendo aqui, homem? — perguntou o Lustosa.
— É
o Major... Ai, meu Deus... Amanheceu hoje com a macaca! Ai, meu Deuuuus...
Sim,
gentis ledores, para quem não sabe, o Major Facundo, ex-Vice-Presidente da
Província — ser Vice já não é fácil, imagine um ex-Vice... — aquele mesmo que
emprestou seu nome à antiga rua da Palma, a que embeiça a praça do Ferreira, encontra-se
sepultado ali, em pé, numa parede fria da igreja, de vistas ao Palácio da Luz,
antiga sede do Governo do qual era servidor. Dos 168 anos que lá habita, até o
presente, comportou-se disciplinarmente, sem incomodar os que pela nave arrastam
joelhos em troca da serena paz de flores de lis, paz esta que, ao que parece, o
Major não compartilha.
Por
detrás de um bloco adornado artesanalmente em mármore e pedra sabão de Lisboa,
encontra-se o corpo, velado pelo texto em letras de tipos variados, quase como a
enredar um enigma:
“AQUI
JAZEM/ OS RESTOS MORTAES/ DO MAJOR/
JOÃO FACUNDO/ DE CASTRO MENEZES/ VICE PRESIDENTE DA PROVÍNCIA/ ASSASSINADO/ A 8 DE DEZEMBRO DE 1841/
SENDO PRESIDENTE/ JOSÉ JOAQUIM COELHO./ NASCEO AOS 12 DE JULHO/ DE 1787.
TRIBUTO
D’AMISADE/ DA SUA INFELIZ ESPOSA/ D.
FLORENCIA D’AND[R]ADE/ BEZERRA E CASTRO/ A 8 DE DEZEMBRO DE 1842.”
Ao passar
levemente a mão no friso dourado que contorna a lápide, não sei como, mas devo
ter acionado alguma trava secreta: uma porta rangedora se abriu e, com ela, uma
mal cheirosa e encofrada poeira do tempo escapou. O Paulinho, com as mãos à
cabeça raspada, correu atrás de um rodo: “O chão, o chão!!! Ai, meu
Deeeuuuss... O Majooor!!!”
Assistimos
então ao trôpego militar que saía, coitado, com um chapelão emplumado
bamboleando sobre uma têmpora — a outra foi perdida no “acto delitoso que o
victimou” —, o quase não-pescoço posto em forro por babados amarelados pousados
à larga lapela azul, a sacudir a areia fininha que escorria pelas dragonas.
Ainda assim, bateu continência ao Lustosa, conjecturando, em solene ato, estar
de cara com um general. Não rogado, o Lustosa que o observava atento, colocou
as mãos pacientes às costas:
—
Descanse, meu filho, descanse... Mas me conte: o que te deu para depois de
tanto tempo estar assim tão alterado?
—
Desculpe-me, senhor, impacientei-me. Não sou homem de ficar parado. Gosto de
trabalhar e tempos há que espero, ansioso, a pátria convocação.
—
Mas você morreu, cristão... Que diabos ainda quer por aqui, criatura?
O
pobre oficial qual sabia o que queria; vertia areia por todo poro, desculpava-se
amiúde e, por um momento, ateve-se apenas a desembaraçar os braços à luz, afora
da janela, sorrindo, ao senti-la desbridar-lhe o mofo. Vez ou outra o pobre
Major engolia seus pensamentos — ou meio pensamentos — e ficava tanto que
abestado... Não proferia duas palavras não fosse uma “casa”. Ora, o cadáver,
numa crise pós-existencial alegórica platônica, não perdera seu costume
provinciano e decidira rever sua casa. Tivemos que levá-lo, cruzando a praça
dos Leões que, já acostumada a todo o tipo de “arrumação”, nem ligava para a
figura espantalhesca do Major... É claro, eu sabia que a nossa Fortaleza — que
tem a tradição de não ter tradição — não se trairia, e por certo haveria de ter
posto abaixo a casa do Major. Deveras, passamos algum tempo ali, na Major
Facundo com a São Paulo, à esquina, onde a tintura da memória desenhava-lhe uma
imagem querida. Acocorado à calçada — era de dar dó —, o Major desfiava a
fatídica noite: Estava ele e a esposa concluindo o jantar, às 8 h, quando deram
por recostar-se a uma das sacadas que dava para a Palma. Era noite sem luar, negrume
à rua. A Florência inda conseguira perceber na esquina da frente, no meio de
entulhos, estranho cintilar. Quase conseguia alertar o marido quando o disparo
se deu. Por um pouco, os estilhaços da carga do bacamarte não deram fim também à
mulher. Tragédia. Antes, sofrera outras emboscadas, na rua da Ponte e na praça
da Carolina, mas escapara. Por um és-não-és, escapara... Lamentava o som
daquele tiro que não lhe deixava mais o ouvido. Chorou, por único olho, uma
gosma amarelada, ralinha, granulada de areia.
O
Lustosa acompanhava o relato com poucas falas. Como repórter que é, não
resistia a interrogar o Major que, de vezes, o respondia:
—
Ô, Joazinho, é verdade que seu partido colocou arsênico na água dos deputados?
—
Era apenas tártaro emético, General. — exclamou de pronto, ainda crendo general
o colunista. — Ideia do Dr. José Lourenço. Eu que nem sabia disto... Fechou a
Assembleia. Foi um Deus nos acuda... Mas, mudando de assunto, e os meus assassinos?
foram presos? condenados? morri em vão?
Expliquei
ao pálido aracatiense que seus executores, o negro Abraão e caboclo Chagas,
foram condenados, sim, e à prisão perpétua. Escaparam da forca por um pouquinho
assim... Mas ainda hoje a sua morte é um mistério. A mandante do crime, acredita-se
ser, a mulher do Presidente da Província na época. Estes saíram impunes.
— A
baronesa? O Presidente? Mas... — Por esta, não esperava.
—
Sim, e uns tais José Agostinho e Joaquim Jacarandá. — complementei.
— Agostinho é coronel do Icó, um “carcará”... Jacarandá,
este é um sem importância, um alferes do palácio. Que vil traição...
—
Não estranhe não, Major — interveio o Lustosa —, vejo urso de gola para
entender essa tal de política... Pense numa máquina de fazer doido! Você é um
herói. Eu mesmo é que não sirvo nem para comandar barraquinha de pamonha, e
vossa mercê um Vice-Governador...
— E
o senhor meu Rei? Qu’é dele?
—Rei
hoje em dia é artigo de luxo de bloco de carnaval, João. Acorda, homem! O nosso Presidente é um operário que posa ao lado da
rainha inglesa e é aclamado pelo Presidente dos Estados Unidos como o político
mais popular da Terra. Nem fala tantas línguas quanto porteiro de hotel
europeu, nem é sociólogo. Apenas um brasileiro, formado pela universidade da
vida.
— República? Presidente? Um peão?
— Ora se... Os tucanos, aqueles que se opõem ao
operário, não querem reconhecer os avanços e conquistas das classes menos
favorecidas nos últimos sete anos de uma política econômico-financeira exitosa.
Também não admitem discutir as delícias e vantagens do governo FHC, aquele em
que o Brasil faliu duas vezes, teve de vender, a preço de banana, ativos
preciosos e ainda agigantou dívida interna pequena deixada por Itamar Franco.
— Tucanos? FHC?
—
Sim, e o Degas aqui é bem capaz de deixar seu jamegão no que digo... E, olhe,
Major, digo mais, sempre aconselho a amigos de meu
tope, a aposentados como eu e você, que é muito melhor, na atual fase da vida,
ou da morte, no seu caso, adquirir um computador que arranjar uma rapariga.
Porque uma mulher adicional, a esta altura dos acontecimentos, por razões
óbvias, só vai lhe causar decepções. Eu conheço um restaurante, se permite um
comercial modesto, o Barrigudo, lá na
estrada de Massapê, em Sobral que eu não esqueço, que tem uma ova de
curimatã... Depois podemos tomar um champã,
percebo-lhe um pouco seco..., e conhecer minha biblioteca, o que acha? E sabe o
que mais, se eu não fosse jornalista, Joãozim, eu seria que nem tu:
defunto!
E assim, nosso esperançado almoço, mais uma vez, foi
para as cucuias. O Major se foi em coreias com o filho do seu Costa e da dona
Dolores que decidiu, por fina força, atualizar o ressuscitado. E certo de que você não pode tirar da cabeça o
que não botou dentro dela, me despeço, ainda com fome: até uma próxima!
Major Facundo, militar assassinado por questões
políticas, em sua própria residência, a mando da esposa do, então, Presidente
da Província. Em 1879, a Câmara Municipal, decidiu homenageá-lo conferindo seu
nome à rua em que morava.
Francisco
José Lustosa da Costa nascido em
1938, em Cajazeiras da Paraíba, veio menino à Sobral, onde, em 1954, ingressou
no Correio
da Semana. Em Fortaleza escreveu para O
Unitário, Correio do Ceará e colaborou no Anuário do Ceará, do amigo Dorian. Em 1974 passou a morar em
Brasília e escreveu para O Estado de São Paulo e Correio Braziliense. Escreveu
diversos livros, muitos sobre Sobral, e costuma dizer que as pessoas só batem palmas
à gente morta. Pois tome essa crônica como tais palmas (a Major Facundo não era
a rua da Palma?)
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