Desde que me entendo por gente sou um sujeito
lesado. Minha mãe diz ter suspeitado até quase o oitavo mês de que eu não
nasceria, tamanha era minha imobilidade intrauterina: não chutava, não me
virava, permaneci (para desespero dela e do médico) quietinho até a véspera do
parto. Até a véspera não, até a hora exata, pois mesmo já enxergando a luz
forte vinda da janela do quarto de minha avó ainda aproveitei para uma última e
descompromissada cochiladinha dentro daquele líquido quentinho.
Claro, não sou bobo, que nasci a fórceps.
Cresci um menino mofino: vivia pelos cantos
coçando a cabeçona cheia de lêndeas. Por conta disso levei muitos cascudos de
meu pai, bastantes gritos de minha mãe, além de mangação dos amigos e irmãos.
Em compensação, na escola eu era o mais comportado. Não por convicção, verdade
se diga, mas por puro comodismo, preguiça mesmo de fazer bagunça. Logo, fui me
tornando um adolescente atípico, preferia músicas lentas, ambientes
despovoados, colegas tristes, os esportes menos radicais. Jogar bila e soltar
arraia eram minhas brincadeiras preferidas, nelas desenvolvi grandes
habilidades. Mesmo no futebol, esporte obrigatório no colégio e no bairro,
escolhi (claro) a posição de “beque parado”: compensava com um bom passe a minha
total falta de mobilidade.
Nunca entendi por que me apelidaram de
“coqueiro”, que não foi o pior dos muitos apelidos que levei pela vida afora.
“Marcha lenta”, “Devagar com câimbra”, “Recordista de cem metros rasos para
tartarugas” e mil outros mais. Se na época já se falasse em bullying, eu seria um caso a ser
estudado pela universidade.
Mas graças a Deus me tornei um adulto
tranquilo, me casei cedo... porque sempre fui caseiro, para desespero dos de
casa. Tenho um verdadeiro fascínio por televisão, que minha adorada esposa diz
(sem dó) ser o vício predileto dos malandros. Também adoro livros, muito embora
passe meses para terminar um reles voluminho de contos. Poesia é minha
preferência, haicais especialmente. Com o tempo fui me aventurando pela prosa,
contos e crônicas sempre, romances jamais. Até arrisco escrever alguns
minicontos e ganhei diversos concursos literários. Ah, sim, meu livro preferido
é Da preguiça como método de trabalho,
do mais que “acomodado” e querido poeta Mário Quintana, e a música que vivo
cantarolando por aí é Soy latino
americano, de Zé Rodrix, um “molenga” convicto.
Concluí a faculdade de Turismo em longos doze
anos, quase o triplo do tempo permitido e quando já havia recebido vários
avisos ameaçadores da coordenação. Mas terminei, mesmo tendo que ir colar grau
em data especial, pois esqueci o dia da solenidade. E como todo bom
“descansado” passei mais alguns anos pensando num emprego que se adaptasse ao
meu ritmo, que com a ajuda de amigos e familiares não foi lá muito difícil.
Hoje sou um modesto funcionário público, que cumpre todo santo dia o calvário
de bater ponto, não sem contar (e marcar no calendário sobre a mesa)
religiosamente os dias que faltam para a minha tão sonhada (e ainda distante)
aposentadoria.
Atravessando a meia idade vou adquirindo o
meu ritmo ideal, pois o avançar dos anos vai me concedendo os álibis
necessários para uma vivência mais tranquila.
Mas para fechar minha penosa missão aqui na
terra decidi finalmente fazer um mestrado, sonho antigo de quando ainda
terminava a faculdade (e lembrado até a exaustão por minha família em muitos
enchimentos de saco). Escolhi o tema, soletrando na cartilha de Dom Gilberto
Freyre e rezando na igreja de São Cascudo: a lenta e eficientíssima guerrilha
(mais eficiente que o magistral pacifismo de Ghandi) movida pelos nossos
“preguiçosos” indígenas contra o ganancioso explorador europeu que aportou em
nossos “tristes trópicos”. Tática tão eficiente que os forasteiros tiveram que
recorrer ao continente africano para conseguir mão de obra escrava para seus
nefastos projetos. Até escolhi (mentalmente, claro) a bibliografia a ser usada
e, principalmente, já elegi a eficientíssima arma (e símbolo) usada pelos
nativos em seu paciente (e vitorioso) empreendimento – A REDE, esse que talvez
seja o símbolo maior dessa maravilhosa guerrilha e com o qual nosso primeiro
habitante enfrentou e venceu o poderoso inimigo. Objeto lúdico e mortal que,
hoje em dia, apenas o pobre Estado do Ceará usa.
P.S.: Até já teria começado a rabiscar as
primeiras linhas de meu projeto, não fosse a encomenda de uma croniqueta de
duas páginas sobre a “preguiça”, feita por este prestigioso jornal, que me
consumiu os meses de maio e junho todinhos, e que talvez ainda me levem uns
bons dias de revisão.
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