terça-feira, 17 de junho de 2025

"Praia de Iracema: uma vitória para quem?", de Raymundo Netto para O POVO

 



Comissão de intelectuais à frente da campanha da "Praia de Iracema"

Comecemos essa boa prosa durante o nosso habitual café da manhã esclarecendo uma dúvida que percebo nebular em alguns: “a Praia de Iracema tem apenas 100 anos?”

Claro que não! Durante toda a existência terrena, sabe-se lá Deus quando minou, diante de tantos acidentes geomorfológicos, esse marzinho em nossa costa desposada do sol. O que está sendo celebrado como centenário em 2025, na verdade, é apenas a mudança da denominação antiga da região, “Praia do Peixe”, para uma nova, “Praia de Iracema”.

E, de fato e por lei, essa mudança aconteceu no dia 7 de maio de 1925.

Atentemos que, até o início da década de 20, não se brigava para morar diante do mar. Ao contrário, quem morasse ali, construía as suas casas de costas para a incômoda e zoadenta seleção de ondas e coleção de areias.

Os pescadores, sim, por uma questão muito lógica e prática, residiam por ali, em casas humildes feitas de taipa ou mesmo em palhoças. Na praia, esses nativos guardavam as suas jangadas e instrumentos de pesca. Naquela região, eram procurados por comerciantes de feira ou mesmo por pregoeiros individuais que compravam o fruto de seu trabalho. Ali mesmo os pescadores, quando preciso, tratavam essa pesca. Isso, naturalmente, liberava um odor não muito agradável para os novos veranistas da elite cafuçu cearense.

Daí, chegou-se a um tempo em que aumentou o número de casas e bangalôs na região litoral. Ter um imóvel de veraneio na praia passou a ser chique e saudável. Foi quando começaram a achar ruim morar na Praia do Peixe.

O Nordeste: vespertino de ação e informação católica, um dos jornais mais conservadores e atrasados do estado, afirmou: “[...] afinal, hão de todos convir que é de fato grotesco apelidar-se, assim tão feiamente, uma das nossas formosas praias, habitadas pelo escol social fortalezense, na época mais agradável do ano. [...] Aquela estação balnear, com os seus confortáveis chalés de estilo moderno, requer, por certo, outra denominação menos repulsiva.”

Não era novidade: rico se incomoda com o pobre, não gosta de tê-lo como vizinho – nem de vê-lo prosperar –, por isso surgiram os bairros de Jacarecanga, Aldeota e agora a Praia de Iracema.

Maria Adília Albuquerque de Moraes, uma das pioneiras feministas do Ceará, intelectual e residente no local, na revista Ceará Ilustrado, de Demócrito Rocha e Tancredo Morais (seu marido), também não gostava daquele nome e passou a chamá-lo em seus textos, por conta própria, de Praia de Iracema, como em uma sutil campanha... e pegou! Outros moradores se reuniram e pressionaram o prefeito da época. Como argumento, a comemoração dos 60 anos de publicação da obra-prima de José de Alencar, uma homenagem e tanto.

Naturalmente, com a chegada desses novos elegantes moradores, os pescadores desapareceriam, aos poucos, do cenário da ora bucólica Praia de Iracema.

Fato: historicamente, não apenas em Fortaleza, as comunidades pobres litorâneas, especialmente as pesqueiras, são ameaçadas por truculentas e covardes remoções, vítimas da especulação imobiliária, mas ainda assim resistem na luta por seus direitos territoriais, pela preservação de seus modos de vida e costumes tradicionais e contra o racismo ambiental.

As ditas “elites”, mancomunadas a governos não alinhados à justiça social, pressionam, em nome de “seu progresso”, a essas comunidades. Oxalá que nós todos estejamos atentos a essas “tenebrosas transações” e tomemos o devido partido, quando for necessário, pois a vida de cada um nos importa!


domingo, 1 de junho de 2025

"O Explorador de Sepulturas", de Raymundo Netto para O POVO


Francisco José Jr., capturando o último exemplar em estoque de 
Fortaleza Belle Époque, de Tião Ponte

Quem andar pela Padaria Romana ou curtir shows de bandas vintage, corre o risco mortal de se encontrar com ele: Francisco José Jr., um homem reservado – a ponto de parecer não estar ali –, de óculos, com extensa calva e usando camisas do Rock’E’rrou... Decerto é o solteirão mais cobiçado... pelas caveiras! Sim, na cidade se comenta a boca miúda que é ele o maior explorador de cemitérios do Ceará, quiçá, da Terra das Palmeiras, e, sem dúvida, da Terra dos Pés Juntos, domínio sombrio que a ele fascina e desafia.

Há anos, o sociólogo, bacharel do Direito e servidor público traz no peito a missão de peregrinar pelos umbrais do Cemitério S. João Batista, a estação que une a vida e a morte, onde os espíritos se despem de sua inútil carcaça humana em busca do significado da existência, da finitude de tudo e do nada... Entre os cadáveres de sua predileção, os da Padaria Espiritual, que não descansam em paz desde de seu chafurdo rotineiro, ainda mais depois da ereção do novo Café Java da Marlene Matos.

Franzé encontra esses despojos mortais, muitas vezes, pobres diabos entregues à própria morte, em jazigos descuidados, depredados e deserdados, órfãos das famílias. Emociona-se e, sensível como é, palestra com todos, e consegue vez ou outra um “mecenas” que encampa a causa e os reforma, como aconteceu com o túmulo de Antônio Sales e de Waldemiro Cavalcanti.

O arqueólogo da necrópole já dessepultou 14 que estavam desaparecidos. Mas não se limita a isso. É um obstinado. Em sua cruzada particular, sai à procura dos familiares, seja em qualquer parte do país e no entorno do Planeta. Destrincha redes sociais, liga, manda cartas e flores, mensagens em garrafas, sinais de fumaça, e-mails, sobras intelectuais. Alguns familiares abordados negam parentesco, correm horrorizados com coroas de alhos e cruzes a ver fantasmas, enquanto outros se rendem a ele, buscam saber mais sobre aquele ilustre antepassado desconhecido e, pior, intelectual, que, até então, deixara como única herança o seu código genético caboclo.

Contudo, Franzé também não tem paz. “O próprio viver é morrer”, lembra-se do Pessoa. É cutucado por forças ocultas, provocado por elas. Os espíritos, como encostos, o utilizam como canal para voltar, serem lembrados neste mundo e até publicar livros, como aconteceu com Sabino Batista.

Um dia, contou-me, encontrou o jazigo de Lopes Filho, membro da Padaria, autor de Phantos, obra simbolista publicada meses antes da obra de Cruz e Souza, marco do Simbolismo brasileiro. Contudo, com a mente nublada de horrores de outro mundo, o pesquisador esqueceu completamente de sua localização. Porém, quando seus olhos anoiteceram, “Ora (direis) ouvir estrelas!”, Lopes Filho apareceu para ele, embriagado, com flor à lapela, à mão uma “branquinha”. Franzé ouviu, paciente, o detalhado e trôpego percurso descrito pelo poeta. Na manhã seguinte, cumpriu a orientação e encontrou a tal sepultura.

Também conta que noutra noite a sua EXposa estava com a coletânea de “O Pão” – informativo da Padaria Espiritual – às mãos, e pôs-se a ler um texto em homenagem ao confrade Xavier de Castro, recentemente morto. Naquele momento, como se proferisse uma liturgia macabra, as juntas dos mosaicos do chão estalaram e, um a um, em torno da leitora, começaram a partir, como se o chão fosse abrir e dele emergisse escorpiões, gafanhotos ou algo mais sobrenatural.

Agora, Francisco José me diz estar às voltas com o Espiritismo... Quer mais? Sim, conhecer os mistérios do além-túmulo, pois do aquém, confessa: “Já estou é enjoado!”




 




 

domingo, 18 de maio de 2025

"À Procura do Café Java", na íntegra, de Raymundo Netto para O POVO


Café Java em 1908


Café Java em 2025


O Café Java, o original, foi fundado em 1886, num canto da praça do Ferreira, quase em frente ao atual prédio da Caixa Econômica, pelo popular Manuel Pereira dos Santos, o “Mané Coco”, marmorista, bombeiro voluntário e um dos personagens da historiografia do cinema no estado.

Com influência francesa, sua estrutura em madeira seguia a estética art noveau, com uso de lambrequins – elementos ornamentais recortados em madeira para adornar os beirais para baixo e para cima –, convergindo na cumeeira – era um telhado de duas águas –, e guardando a parte de cima da sua fachada, de ponta a ponta, uma grade de taliscas também de madeira.

Era nele que se reunia, anualmente, no 1º de abril, a “tropa” responsável pela organização da “maior festa popular da Fortaleza antiga”: o Festival da Potoca, ou, melhor dizendo, da mentira! Também ali, se encontravam os apreciadores da aguardente do Cumbe, trazida pelo Mané Coco de sua terra, o Aracati.

Os seus clientes passavam pelo imenso “Cajueiro da Mentira” e colhiam de seus galhos mais caídos os suculentos cajus para degustar com a boa pinga, enquanto outros bebiam o cafezinho simples, coado na hora, jogavam dominó e/ou esbanjavam seus sonhos, ideias e escritos. Entre eles, Ulisses Bezerra (27) e Sabino Batista (24) sugeriram a um jovem amigo poeta, o irreverente Antônio Sales (24), a criação de um grêmio literário. Ora, o Sales não curtiu. Disse: “Só se fosse uma coisa nova, original e mesmo um tanto escandalosa, que sacudisse o nosso meio e tivesse repercussão lá fora.” Ele não gostava de formalidades, retóricas, discursos e academias. Mas, provocado, criou o título e elaborou o seu “Programa de Instalação”, uma espécie de Estatuto, menos oficial e mais debochado.

Assim, em 30 de maio de 1892, em um imóvel alugado na rua Formosa, 105, fundaram a mais original agremiação artístico-literária do Ceará: a Padaria Espiritual (1892-1898).

Depois do disputado evento, todos se dirigiram para tomar um cafezinho no Café Tristão, do qual nunca ouvi falar.

Na verdade, nas Atas da Padaria Espiritual, não encontramos registro de nenhuma “fornada” (sessão) dos “padeiros” (gremistas) que tenha acontecido no Café Java, embora, ainda em 1892, após terminada uma delas, se dirigiram a ele. Então, não é correto dizer que algumas fornadas foram realizadas por lá.

Também sabemos que, quando da distribuição de seu informativo “O Pão”, os padeiros se abancavam no Java como ponto estratégico de encontro e venda aos seus leitores.

Em 1920, porém, o prefeito mandou derrubar, vítimas do “progresso”, os quatro quiosques existentes nos quatro cantos da praça do Ferreira, verdadeiras vítimas do “progresso”. No entanto, o Mané Coco já havia vendido o Java há mais de duas décadas e abriria um outro Café, o Central, novo ponto de encontro dos últimos padeiros.

Quando houve o anúncio, pela Academia Cearense de Letras, de um “outro Café Java”, também no Centro, mas em local diferente do original, acompanhei.

Estranhei tratar-se de uma “réplica”, o que visivelmente não é, pois é totalmente diverso, não só no material da estrutura, que é de ferro, como em toda a sua arquitetura e ornamentos.

Não sei se realmente esse negócio vai vingar, se será possível, diante do eterno descaso ao Centro, realizar tais programações culturais prometidas pela entidade naquele espaço, que é bastante reduzido, além de ser possivelmente uma onerosa manutenção. Espero que seja possível.


E dói demais assistir, logo ao lado, a igreja mais antiga da cidade, a do Rosário, quase se desmanchando à própria sorte: suja, enegrecida, com portas deterioradas, totalmente pichada e já saqueada. Mais à frente o prédio do Museu do Ceará que, desde 2012, comemorou o “início da reforma”... sem fim! Parece ser demais exigir do Poder Público uma atitude decisiva de proteção, conservação e preservação de nosso centro histórico.



Voltando ao Café Java... eu, da forma como gosto e acredito em livros, acho que seria uma homenagem muito mais relevante e efetiva à Padaria, a publicação e a democratização do acesso à população cearense da prometida coleção “Biblioteca da Padaria Espiritual”, composta de cerca de 14 títulos desses padeiros, pois o que vemos é que muita gente diz comemorar essa agremiação sem nunca sequer ter lido uma dessas obras por eles escritas, simplesmente porque não são acessíveis! Afinal, “Fornecer pão de espírito aos povos em geral” não era o objetivo maior da Padaria?

Então, como diria Antônio Sales em suas sessões: “Está aberta a fornada.”









 

quarta-feira, 7 de maio de 2025

"Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes: 90 anos", de Raymundo Netto para O POVO


“No entardecer da vida, vós sereis julgados no amor.”

(São João da Cruz)

 

Filho de Rosa de Oliveira e José Bezerra de Menezes, Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes veio ao mundo em 28 de abril de 1935. Iniciou a sua carreira ininterrupta do magistério com apenas 17 anos, na época, ainda estudante liceísta, na escolinha montada na copa da casa de seu avô Belarmino, aos cuidados da tia Eliete, e tendo como inspiração, entre outros, o educador Lauro de Oliveira Lima (1921-2013), Martinz de Aguiar (1893-1974) – “um misto de Sócrates e Diógenes” – e Capistrano de Abreu (1853-1927).

O jovem pretendia cursar Engenharia, mas com as frequentes temporadas entranhado nos acervos da biblioteca do Liceu e da Biblioteca Pública do Estado – e logo também na biblioteca do Instituto do Ceará, aos cuidados e orientação de Maria da Conceição Sousa –, reconheceu que não era aquele o seu destino.

Pensou em cursar Direito, mas, por um acaso burocrático, não pôde fazer vestibular naquele ano e foi convocado pelo serviço militar. Depois, considerando ineficiente o curso de Filosofia da Faculdade Católica, optou pelo da Pedagogia, quando soube que dom Lustosa, arcebispo criador da entidade, não permitia homens nesse curso, pois nele se formavam as freiras. E foi dessa forma que ingressou no curso de Letras Neolatinas.

Mal se formara, Diatahy participou de uma seleção de bolsa de estudos pela Aliança Francesa, o que o fez residir em Paris e estudar em Sorbonne, entre 1959 e 1960, alterando irremediavelmente o curso de sua vida e permitindo-lhe o convívio com grandes intelectuais de reconhecimento internacional, entre eles, Jean Piaget, cuja complexa obra o “habitava desde muito cedo como um demônio interior, um grande desafio e muitas indagações”. Seria impossível, diante do limitado espaço a mim concedido, citar o extenso currículo de títulos, conquistas, premiações e obras do prof. Diatahy, mas destaco: o bacharelado e licenciatura em Pedagogia, o doutorado em Sociologia (França), pós-doutorado em História Antropológica (França), professor emérito e titular do doutorado em Sociologia, do mestrado em História Social e do mestrado em Letras (UFC) e do mestrado em Filosofia (Uece). É membro do Associação Brasileira de Antropologia, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do Instituto do Ceará e da Academia Cearense de Letras.

Tem diversas obras publicadas e colabora em revistas nacionais e internacionais. É o responsável por diversas contribuições no campo da ciência, da pesquisa e da cooperação internacional. Resumindo, diante de sua complexa erudição e “pneuma”, podemos afirmar ser o mestre uma “enciclopédia de múltiplos saberes”, como ele mesmo definiria Câmara Cascudo, quando de sua visita à residência do historiador, na época, com 79 anos.

Pela imensa bagagem cultural e crítica que possui, é cuidadoso com o emprego das palavras e de conceitos, não se deixando levar pelas midiáticas unanimidades e pseudocertezas propagadas rapidamente por aspirantes a intelectuais, sendo ele, sim, hoje, o maior intelectual vivo em nosso estado. E temos a sorte de encontrá-lo, lúcido, sensível, brilhante, despertando pacífica e subitaneamente qualquer debate, jogando luz às ideias, e ainda dando-se o trabalho de ler alguns textos deste que escreve esta modesta nota de admiração.

Assim, concluo esta breve celebração, apresentando o espelho daquele que a inspira: “Prefiro as situações onde predominam a simplicidade e a espontaneidade das relações, talvez por ser habitado por natural espírito galhofeiro ou talvez por assumir o propalado traço moleque da cultura cearense, que tende obsessivamente a desconstruir pela ironia quase grotesca todo falso louvor ou glória vã. [...] muito me apraz todavia definir-me para mim mesmo como um contador de histórias.”

Vida longa, prof. Diatahy.




 

sábado, 19 de abril de 2025

"A Caipora e Jeovah Mendes", de Raymundo Netto para O POVO


“Segundo a tradição folclórica nordestina, a Caipora é um menininho peludo que traz um cachimbinho na boca e anda montado num porco-do-mato, sempre em proteção à fauna e à flora. A segunda-feira, o ‘Dia da Caipora’, é dedicada à proteção de todos os animais silvestres [algumas versões remetem às sextas e dias santos], não sendo então permitido aos caçadores capturá-los. Para aplacar a ira da Caipora, os antigos aconselhavam os caçadores a deixar, num pedaço de toco, uma pequena quantidade de fumo, uma cabeça de alho e um pouco de aguardente.”

Assim, nesta segunda-feira Caipora, trago acima esse fragmento me deixado em folha de caderno, escrito de próprio punho pelo historiador e escritor Jeovah Mendes, confrade do nosso fiel e agradável sodalício da Padaria Romana e do Restaurante Caravelle em Fortaleza.

Jeovah, cearense de Itapiúna, é um contador de histórias, autor de 19 livros e 8 biografias, tendo participado do programa do Jô Soares por 8 vezes, nas quais, entre outras, discorria sobre esses mitos da cultura popular também nordestina, como a Caipora, o Boitatá, o Curupira, a Mãe-d’Água, a Cabra Cabriola, a Mãe da Lua, o Bacurau...

Ele mesmo me contou que, quando criança, juntamente com outros meninos, munidos com lamparinas ou pequenas lanternas, se embrenhava na mata à caça de pequenos animais, atento à possível presença e consequente perseguição daquele perigoso serzinho.

Curiosamente, mais tarde, herdaria uma pequena propriedade situada em Aratuba, denominada “Sítio Caipora”. Ao perguntar ao seu tio Antônio – mais conhecido como “Toinho Caipora” – o porquê do nome da fazendola, ele respondeu que seu pai, quando adquiriu aquele terreno em 1850, garantia que por lá a Caipora já morava, o que resultaria durante anos no grande consumo de alho, pedaços de fumo e muita cachaça!

Eu também, desde pequeno, por meio das leituras de Lobato, me encantei – e fui encantado – por essas lendas e personagens da mitologia folclórica fortemente influenciada pelas contribuições indígenas, africanas e europeias que refletem a nossa vasta diversidade cultural. O fato de sobreviverem e resistirem ainda nos dias atuais deve-se, prioritariamente, aos coloridos canais da oralidade, marca de nossa cultura ágrafa sertaneja, mesmo quando temos ciência de que muitas dessas lendas fantásticas foram criadas com o objetivo de impor alguma moral e/ou para “conter os filhos mais danados” com o emprego do recurso do medo: Quibungo (Bahia), Papa-Figo, Barba Ruiva (Piauí), Cabra Cabriola (Pernambuco), Alamoa (Fernando de Noronha), o Cabeça de Cuia, a Mãe da Mata etc.

Por se tratar de uma lenda brasileira, encontramos variações regionais da Caipora. Entre elas, em vez do menininho, uma indígena pequena, muito forte e peluda, com cabelos longos e avermelhados. Em algumas versões, ela persegue homens que adentram a mata e se relaciona sexualmente com eles, impondo-lhes fidelidade eterna que, se rompida, resulta em morte do traidor. Em versões latino-americanas, a Caipora é um ancião indígena com poder de ressuscitar animais mortos ou tomar a forma de cães ou porcos. Ademais, é comum no Brasil associar a Caipora ao infortúnio. Ou seja, quando se está numa maré de azar, se diz: “está com a Caipora”. Assim, “pela cachaça de graça que a gente tem que engolir”, salve Jeovah Mendes e a sua Caipora.




 

quinta-feira, 27 de março de 2025

"Coisas Engraçadas de Não se Rir" (o lançamento), de Raymundo Netto para O POVO


É este o título do meu último lançamento. Um título que, me parece, desperta certo estranhamento nos leitores, pelo menos em alguns poucos que tenho acumulado em vinte anos de exercício e dos quais invejo a generosa persistência e lealdade.  

Uma reunião de crônicas – há quem diga se tratar de contos, e essa confusão meramente didática, acredito, contribui para o efeito desejado – que têm como pano de fundo o mais banal cotidiano de personagens aparentemente simples.

Claro, essas pessoas não poderiam ser eu nem você, mas algum de nossos vizinhos, outros parentes distantes, decerto um cunhado, alguém na esquina ou um desafeto de infância. Nunca, nunca essas “Coisas...” potencialmente burlescas aconteceriam conosco: um homem que, após o término de relacionamento, sofre como o diabo de saudades e pela perda da... sogra!; o mistério de uma mulher belíssima que não segura namorado, pois dizem: “Homem que tem a Dadivosa – é o merecido nome da moça – não presta mais não”, gerando especulações e despertando quase uma competição entre corajosos candidatos; Camila, a esposa insegura e obsessiva que não desgruda do sufocado marido; o sofrido Dedé, que não sabendo como fazer para saciar a namorada ninfomaníaca, tenta convencer os colegas de trabalho a “dar uma força”; Peixoto, que não admitindo assistir à nudez da mulher em casa, é surpreendido quando ela veste uma burca; a difícil tarefa do desembargador na tentativa de fazer seu inútil filho a ser alguém na vida; o homem chamado “Ninguém”, que se apaixona e vive um conflituoso romance com uma manequim de vitrine; Padilha, que declara seu amor pela esposa do melhor amigo, o Honório, deixando-o absolutamente ensandecido de ciúmes; o sargento Barata que, cansado de ser humilhado pela mulher, percebe que a única forma de ela deixá-lo em paz é dando um jeito para que ela o traia; Petra, a mulher insensível, que nunca chora por nada, mas que descobre o poder das lágrimas cortando cebolas; Jandira, a moralista do condomínio, que incomodada com os gemidos e gritos devassos de um casal vizinho, vai à luta; a garota que despreza o pai, simplesmente por não aceitar ter herdado dele o seu tremendo nariz; o militar da reserva, síndico exemplar do condomínio, até o dia em que colocou uma prótese peniana, entre outras coisas engraçadas... talvez nem tanto, afinal, fazer rir não é fácil. Principalmente no papel, quando não é possível garantir o timing desejado na leitura do leitor, assim como pela ausência de gestos, expressões e voz, instrumentais próprios de humoristas no palco ou mesmo em uma singela mesa de bar.

Contudo, mesmo assim, o livro se arrisca, mesmo sem qualquer outra pretensão, a divertir e a conduzir o leitor em um caminho de ironias, referências, alusões, deboche, cinismo e um pouco de paranoia, de forma que comprovemos, com uma boa dose de crítica e de reflexão, a velha máxima de o brasileiro ter a mania de rir de suas próprias desgraças... ou de sua mais comovente hipocrisia.

 

P.S: Os interessados, por ora, podem adquirir o livro por PIX, sendo a chave: livrodoray@gmail.com.

Por este mesmo e-mail que é a chave do PIX, após efetivar o pagamento de R$ 60,00, me envie seu nome, endereço completo e CEP, que enviarei para você.





segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

"O Homem que não Sabia Morrer", de Raymundo Netto para O POVO


Benigno despertou em um assombro extraordinário. Por cima dos olhos tingidos de pavor, uma interrogação reluzia: “Qual o sentido de minha vida?”

Mastigando cereais vencidos à mesa há anos solitária, buscava por algum premeditado e egoístico ato heroico – como na maioria o é. Precisava abraçar uma causa nobre, aquela a valer alguma fatia de glória imediata, o suficiente para sua alheia autoestima.

Assistindo na TV a um histérico e dispensável noticioso policial – como a maioria também o é –, soube que em certo lugar, na fronteira do país, havia contrabandistas de órgãos humanos. Por associação esdrúxula de ideias, imaginou o destino de tais órgãos: o salvamento de outras vidas! Sem demora, comprou passagem e se dirigiu àquele lugar, resolvido a lhes ceder um rim.

Contrariando a máxima do Barão de Itararé que afirma “de onde menos se espera, daí é que não sai nada”, nem mesmo eu sei explicar como o tonto, extasiado na sua felicidade burguesa, conseguiu encontrar tais contrabandistas.

Eles, claro, ainda ressacados da noite anterior, riram-se a valer – também sem entender nada – e, com todas as honras, o anestesiaram e, depois, em torpor profundo, o rebolaram no bagageiro sujo da van, sala de cirurgia improvisada. Nesse momento, diante da inesperada novidade, os malvados perceberam que poderiam tomar não apenas um rim, mas os dois. Aliás, se já estavam ali mesmo, por que não arrancar tudo aquilo que pudesse ser de proveito? Assim o fizeram. Levaram tudo: rins, fígado, coração, pulmões, córneas, pâncreas, intestinos... e o que deu. Motivados por uma bizarra gentileza, fecharam as suturas e largaram o corpo gordo e nu à beira da estrada.

No dia seguinte, Benigno acordou. Sentia-se mal, porém, mais leve. Sem córneas, não viu ninguém. Percebeu pelo corpo as diversas costuras grosseiras e malfeitas. As linhas de fios grossos espetavam o inchaço da pele inteira. Todavia, mesmo quando percebeu-se enganado, não conseguia sentir ódio, pois a ele faltava o coração.

Ao ser encontrado por populares, tentaram em vão descobrir contatos de parentes, amigos, colegas que pudessem vir buscá-lo, socorrê-lo em tão inusitada situação. Mas ele não se lembrou de ninguém – e não foi porque levaram também o seu cérebro, só por diversão, é claro. O homem adorava a solidão, era avesso às manias e celebrações humanas e ao cheiro de animais. Desconfiava de todo mundo, evitava sair de casa, seu maior refúgio, e assim afastou-se de tudo e de todos.

No leito ao corredor do hospital de caridade, ao questionar o médico plantonista sobre a gravidade de seu caso, recebeu cruel prognóstico: “Lamento, o senhor não pode mais morrer!”

Sim, com a ausência de seus órgãos vitais, seria impossível o infarto, a trombose, cirrose, enfisema, tuberculose, demência, nem a simples pneumoniazinha... “Meu Deus, estou perdido para sempre”, angustiava-se o desanimado Benigno, cujo sangue gelava parado em seu corpo imortal, enquanto revelava-se que, de fato, já havia morrido desde quando passou a não existir para mais ninguém.

 

 




 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

"Ilusionista", de Raymundo Netto para O POVO


Samuel, quando veio ao mundo, em vez de chorar, clamava: “quero ser mágico!”

Assim, desde de a sua meninice, peregrinava por jornais, revistas, manuais e internet e colecionava álbuns de figurinhas em busca de conhecer e se aproximar dos grandes prestidigitadores de sua época. Nesse intuito, fugiria da casa paterna resolvido a apreender os segredos milenares e maravilhosos do ofício.

Debulhadas inúmeras folhinhas de parede, o adolescente se via perdido, sozinho e faminto num mundo de inimaginável realidade, até a chegada na cidade do famoso Gran Circo Internacional. Entusiasmado, Samuel se dirigiu a ele, enfrentando a fila de pretendentes a serviços temporários, pois faria qualquer coisa, desde que pudesse se aproximar de Eugênio Roudin, o mágico, o melhor de todos. 

Aceito, passava o dia varrendo e limpando a coxia, lustrando objetos e, no momento do espetáculo, carregando pesos, vendendo pipoca, milho verde, balões e brinquedos de néon. Ali, dessem qualquer espaço, Samuel não perdia a oportunidade de anunciar: “Seria o maior mágico do mundo!”

Às noites, no sereno frio da manta naftalínica, seduzido pelo vagalumear das estrelas perdidas na vastidão do cortinado negro, fantasiava o seu picadeiro de encantamentos.

Um dia, de tanto se enxerir, perturbar a todos e assediar Roudin, conseguiu arrancar dele a promessa de treiná-lo como seu assistente. Seu objetivo, enfim, se realizaria.

Porém, para a surpresa do mágico, apesar do entusiasmo e a declarada paixão pela arte do ilusionismo, quando Roudin pôs numa mesa uma série de objetos utilizados em seus truques, como baralho, cordas, lenços, flores artificiais, moedas, dados, argolas, entre outros, o rapaz se resumia a esfregar as mãos e fitá-los com uma ansiedade vazia de qualquer experiência. Roudin pensou: “Teria que começar do zero!”. Para piorar, quando o fez, tudo indicava que Samuel não tinha a menor aptidão para a coisa. Era desastrado, desconcentrado, uma tragédia: um coelho descia-lhe pela perna da calça, se enrolava em lenços coloridos, tropeçava em fios de náilon disparando papéis coloridos pelo colarinho, escapavam-lhe pombos pelas mangas da camisa, esparramavam-se copas e ouros pelo chão... nada haveria de dar certo.

Após várias tentativas e frustras recomendações, Roudin surtou. Era uma absoluta perda de tempo... do seu tempo! Já não entendia de onde o rapaz tirara aquela ideia de que um dia poderia ser mesmo um mágico de verdade. Era, isso, sim, um inútil e grandessíssimo pateta que jamais dominaria o universo da magia.

Os colegas de circo, sentados nas arquibancadas a admirar os ensaios do garoto, nunca haviam visto o elegante mágico perder as estribeiras. E alguns, por considerarem Samuel um tanto pedante pelas suas incontáveis afirmações de ser o maior mágico do mundo, diante de suas trapalhadas, gargalhavam e o vaiavam a valer, numa estrondosa, constrangedora e irremediável humilhação.

Transtornado, Samuel assistia ali, por meio da plateia de seus próprios colegas e mentor, o coração dilacerar em rasgos perversos de solidão. Ainda diante do achincalhamento geral, abaixou-se, sacou um punhado de terra molhada por suas lágrimas, moldando com ela uma ave entre as mãos. Soprou seu bico e, como que puxando alfenim, fez crescer o grande pássaro vermelho a emitir sons dolorosos e estridentes. O fracassado artista, então, saltou sobre seu dorso, subindo em voo ligeiro através das estrelas costuradas na lona circense, sabe-se lá Deus para onde, determinado a nunca mais acreditar em sonhos.

 




 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

"A Dois", de Raymundo Netto para O POVO


Aquele casal se amava tanto, mas tanto, tanto, que um dia acordou pregado!

De primeiro, perante o espetaculoso incompreendido, o sobressalto. Depois, com pouco, a constatação bem-querida. Ele: “Agora eu tenho certeza, amor, de que você não me escapa!” E ela: “Hummm... e eu, que tenho você todinho para mim...” E num chamego quase autofágico o casal descobriu em seu mundo sem novidades matrimoniais o alvorecer de um inconcebível prazer de amar a si mesmo, a bolinação inesgotável, o compartilhar de seu próprio gozo, tão extraordinário quanto a descoberta da areia lunar.

Passados alguns meses de experimentos e satisfações transcendentais de fazer inveja a Kama Sutra, encontramos o mesmo casal trazendo no corpo as marcas da perversa convivência íntima: feridas, hematomas e cicatrizes nos braços, nas pernas, na alma.

Não havia absolutamente nada que eles gostassem de fazer juntos – e eles tinham, por anatomia, que fazê-lo exatamente assim, juntos – muito menos pensar. Sim, compartilhavam também os seus pensamentos. O certo é que não se toleravam mais. Para eles, o companheiro ou a companheira era de um tédio nauseante, de até desejar a morte: a do outro, e por efeito, a de si mesmo.

Mesmo em silêncio, em frente à TV, um zapeado incontrolável. À mesa, ela não suportava os maus hábitos dele e reclamava da comilança que a deixava cada vez mais gorda. Por outro lado, ela o fazia perder horas em shoppings na busca de acessórios ou nas tardes de sábado no salão, além de raspar-lhe as pernas. Gentilezas? Coisa do passado. Ele: “Vai primeiro, preguiçosa”. Ela: “Seu porco, e eu tenho que esperar a sua boa vontade para poder me lavar direito?”

Daí, uma manhã, ao se coçar enquanto acordava, ele percebeu-se livre da incômoda mulher, deitada do outro lado, despregada de seu corpo cativo. Imediatamente a despertou com a boa nova. Não demorou nada e, mesmo sem despedidas ou perguntas, ambos cruzaram a porta e seguiram a calçada, claro, por caminhos completamente opostos.

Durante anos eles perambularam pelas ruas de outras cidades, outros estados e países, viveram outras vidas, amaram e desamaram ao desfrute da liberdade outrora lhes negada. Curiosamente, vez ou outra cruzavam o mesmo itinerário. Nesses casos, quando possível, mudavam de calçada, davam meia-volta, embrenhavam-se à primeira porta aberta. E, quando inevitável, no máximo – às vezes nem isso –, um tchauzinho insosso com cara de “passa reto” ou “desgruda de mim”.

Um dia, sem data marcada, cansados de tanta permissividade e falta de rumo, voltaram a sua casa. Ambos estavam profundamente diferentes, e mesmo assim se reconheceram. Estavam cansados, mais velhos e mais leves. Fitaram-se demoradamente, como a compreender o papel daquela pessoa em sua vida. O choque das lembranças a dois de algo que não era amor, mas coisa muito melhor, os atravessou como o cheiro do vento que aquecia aquela mesma calçada. Sem palavras, entre risos e lágrimas, arriscaram tocar no rosto um do outro e caíram de lábios em um beijo indecente, apoteótico, jamais visto ou compreendido, rendidos para a vida em um perdão supremo e desnecessário, mais unidos do que nunca por um só coração.





 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

"Tempos Difíceis", de Romeu Duarte para O POVO


Foto: Ricardo Stuckert/PR

Chama-se plutocracia o comando exercido ou influenciado pelo segmento social mais abastado de uma dada população. A tal palavra, composta, deriva dos vocábulos gregos plouto, riqueza, e kratos, governo. Assim, abandonando a ideia de uma administração liderada pelo cachorro do Mickey Mouse, é o governo dos ricos, oposto à democracia, que é o governo do povo.

O capital, em sua atual fase, escancara uma face vil, escrota e perversa que ainda não havia apresentado. Ele, que sempre se esmerou em morrer para renascer cada vez mais podre, só que, desta vez, foi além do esperado. Escorado na mentira, nos desvãos sombrios das redes sociais, no analfabetismo político e na opressão, serve bem a um projeto criminoso de destruição da Terra e dos seus habitantes.

É o que se pode pensar e sentir ao se ver os três mosqueteiros da desesperança, musk, trump e zuckerberg (tem fonte menor, redator?), brandindo seus floretes contra os interesses democráticos e populares em todo o mundo.

Se os dois mais novos, multibilionários, acham que suas empresas e seus negócio$ estão acima das leis dos países e que podem fazer o que bem entender em nome de uma imunda "liberdade de expressão", que só funciona para propagar fake news aos quatro ventos, o mais velho, não menos cheio do ouro e agora guindado à presidência dos EUA, pretende, além de expulsar os imigrantes, anexar de forma pura e simples, o Canadá, a Groenlândia, o México e o Canal do Panamá.

Como diria a minha santa e saudosa mãezinha, meta-lhes o braço que o dedo é pouco.

Enquanto o planeta se escandaliza ante tanta arrogância e violência, surge a pergunta que não quer calar: para o que serve, hoje, a ONU? Desmoralizada pela inação frente ao genocídio que Israel promove no Oriente Médio, o que resta à organização para defender a paz entre as nações? Com toda certeza, o papa Francisco, sozinho e de maneira corajosa, tem feito muito mais por isto do que o comissariado do organismo internacional.

É claro também que as reacionárias vacas de presépio globais aplaudem as escaramuças do famigerado trio, tal como as que foram recentemente apeadas do poder no país. A plutocracia brasileira, formada pelas avenidas Faria Lima e Paulista e boa parte do agro, faz coro ao tétrico jogral, neste aniversário de dois anos do ensaio de golpe do 8/1.

É por isso que é tão importante comemorar a vitória de Fernanda Torres na disputa do Globo de Ouro e o retorno das peças artísticas pertencentes às sedes do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do STF, vilipendiadas quando da atroz tentativa de quartelada, aos seus lugares de origem e devidamente restauradas. Ambos foram vitórias da cultura e dos que a produzem, após anos de incursões que tinham como único fim o seu solapamento. Os dois feitos são denúncias e bem-sucedidas intervenções que evidenciam as forças malignas que operam dia e noite para destroçar o Brasil, agora cada vez mais às claras e conhecidas internacionalmente. Não dá mais para tapar o sol com a narrativa peba da peneira, canalhas. Para vocês, a solução é justiça e cadeia. Sem anistia!






 

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

"Prêmio Nauã Marley de Literatura"


Hoje, dia 6 de janeiro, Dia de Reis, estava passeando no Shopping RioMar Kennedy com meu filho Saulo, quando me deparei com um rapaz de 20 anos, estudante de Engenharia de Produção da UFC, que me revelou ser um leitor. Era o Nauã.

Bastante tímido, estava com pressa e eu tive até que segurá-lo, pois devido ao seu nervosismo queria desaparecer dali.

À madrugadinha, trabalhando, consultei a minha caixa de e-mail e ele me escreveu, olha só, e botou para fora muito do que ele poderia ter dito para mim... mas escreveu, me emocionando com sua história e confirmando a certeza de o encontro com o(a) leitor(a) é SEMPRE o maior prêmio que um autor pode receber.

Assim, aqui publico, para não mais esquecer ou perder, o manifesto do então amigo NAUÃ MARLEY:

 

Prezado Raymundo,

 

Sou aquele que te cumprimentou esta tarde, no shopping.

Eu estava nervoso, como você deve ter percebido, e temia incomodá-lo. Na verdade, só quando cheguei à rua foi que me lembrei de lhe pedir uma foto e um autógrafo — mas já era tarde demais.

Enfim, havia uma biblioteca muito pobre na minha antiga escola — um colégio privado, de bairro, onde cursei o fundamental — cheia de enciclopédias velhas e mofadas. Havia também uma pequena estante ao fundo, com algumas surpresas: Machado de Assis, Lygia Fagundes Telles e o seu Crônicas Absurdas de Segunda. Foram as minhas primeiras descobertas, de quando eu estava aprendendo a gostar de ler.

O seu livro ficou sendo o meu favorito, o meu primeiro livro de cabeceira. E devo agradecê-lo, pois acredito que, com ele, eu tenha sido influenciado a olhar o mundo com novos olhos — durante muito tempo, guiado pelos nomes das ruas em suas crônicas, peregrinei por Fortaleza, fotografando de forma amadora — até acabar o encanto.

E mesmo muito tempo depois, durante o Ensino Médio numa escola pública, alguma coisa restou impregnada. Fui presidente do Grêmio e com muito gosto o inimigo número um dos gestores do colégio.

Brincando de ser Demócrito Rocha, editei um jornal e uma revista — modéstia à parte, de forma muito competente, muito mais competente do que a imensa maioria daqueles jornaizinhos bobos feitos por alunos bobocas.

O jornal era conservador (ou irônico) e se chamava Correio Gremista, mas a revista era liberal e safada, e tinha um nome impactante: chamava-se revista Marginal e eu sabia muito bem o que estava fazendo com aquele título grosseiro. Muito além do sentido popular, “marginal” se referia àquilo que ficava à margem da nossa grade curricular. Éramos disciplinados a pedir a benção a Mário e Oswald de Andrade (você já leu Metrópole à Beira Mar, do Ruy Castro?), mas nem um piu era dado sobre o contista Moreira Campos e o poeta Gerardo Mello Mourão, cearenses como eu e você, e esmagadoramente maiores do que os paulistas. 

Bem, era isso que eu devia ter lhe dito, embora mais uma vez a timidez tenha me tomado a palavra. E mesmo que eu fosse sério e respeitado pela Direção da escola, porque a respeitava, havia em mim um espírito gaiato proporcionado pela leitura dos livros e que me permitiu fazer muitas coisas importantes naquela época. Mas isso já passou, foi há dois ou três anos, quando me formei no Ensino Médio e a adolescência ficou para trás.
Hoje sou estudante de Engenharia de Produção na UFC, perdidamente apaixonado por Lygia Fagundes Telles e Gerardo Mello Mourão, que em breve completará 108 anos, Lygia fará 106 em abril e eu farei 20 em julho.

Por Gerardo tenho cultivado um perfil minúsculo no Twitter que dispara versos de poemas em horas marcadas e escrito a deputados, a ministros, e até ao presidente da República para que algo seja feito em sua memória. E agora tenho a honra de escrever a você, primeiro agradecendo por tudo e depois pedindo que você também interceda por Gerardo — quem sabe por meio do jornal O POVO?

Ah! Eu já ia me esquecendo. A escola em que cursei o Ensino Médio, uma escola profissionalizante, se chamava, veja só, Dona Creusa do Carmo Rocha, na avenida Sargento Hermínio, hoje demolida para dar espaço a outra maior e mais moderna, de mesmo nome.

Enfim, um grande abraço! E um feliz ano novo! Foi uma grata surpresa encontrá-lo logo no começo de 2025. E me desculpe se escrevi demais, é que eu fico mais à vontade por escrito. (Li outros livros seus, além do Crônicas... E sim, visitei o seu blog. Vou comprar o novo livro agora que não preciso “roubá-los”).

 

Nauã Marley