sábado, 26 de setembro de 2020

"Carmélia", de Raymundo Netto para O POVO

 

“1, 2, 3 Carmélia! 1, 2, 3 Carmélia!”

A criançada, como em quase todas as tardes dominicais, se reunia no meio da praça ensombrada de árvores pacatas a enredar-se nas mais diversas brincadeiras infantis, sendo, entre todas, a mais cobiçada a de pique-esconde. Porém não o era para Carmélia, uma menininha desengonçada, magricela e deveras distraída, que mesmo portadora do verme filosófico e do hábito de guardar latas, sentia a curiosa necessidade de convivência com outros, talvez para ter a certeza de que existia de verdade ou que ainda estava viva.

Contudo, havia naquela brincadeira uma frustração intolerável: era sempre a primeira a ser encontrada! Quando isso acontecia, padecia horrores, e a partir de então, era vê-la ali, no pique, sentada inerte como um poste, assistindo à tardia chegada dos outros participantes. Alguns até conseguiam, com uma incompreensiva habilidade, chegar até o ponto e se salvar. Outros poderiam também ser encontrados pelo pegador, mas só após muito tempo, o que alargava a agonia da menina, sentindo-se diminuída, incapaz, ao contrário dos demais, eufóricos à espera daquele derradeiro redentor a gritar, para desespero do pegador: “1, 2, 3 Salve Todos!” Comum era ela voltar para casa arrasada, se jogando entre as suas latas e pensando alto, num ímpeto belchiórico de amar e mudar as coisas: “Eles verão... no domingo será diferente!”

Assim, naquela tarde, estava mudada – embora ninguém a notasse –, confiante, com ares de segredo. Não sabiam, durante a semana, Carmélia mapeara aquela praça de ponta a ponta, todos os espaços, buracos e esconderijos. Daí, como planejara, enquanto a pegadora fechava os olhos e contava, aos berros e ligeira, até 100, ela já sabia onde seria o seu perfeito escondedouro.

A menina era toda entusiasmo e animação. Ali, em completa escuridão, podia ouvir os passos e a correria seguidos da sentença: “1, 2, 3 João! João!” O menino deveria estar chorando de ódio, pensava. Era o primeiro. Não ela, mas ele. Com o tempo, ouviria um a um dos jogadores sendo denunciados pela pequena pegadora que, provavelmente, já estranhava o seu inexplicável paradeiro.

Roendo as unhas trêmulas, olhos imóveis na sua própria emoção, estampava um sorriso malino: “Não vão me encontrar, não vão!”

Passaram horas, dias, anos e ela prosseguia na brincadeira. Aquele cativeiro quase não a comportava mais, tinha fome, todavia gritava-lhe o espírito vingativo: “Acham que eu sou boba, mas não sou besta não. Eles vão ver...”

Um dia, entediada e incomodada com o silêncio, olhou com cuidado por cima de seu esconderijo e não viu ninguém. Estranhou também não encontrar a árvore escolhida como ponto do pique-esconde. Levantou-se com vagar e mesmo sem saber onde bateria o pique, pulava alto, as lágrimas cascateando nos olhos, numa alegria de circo: “1, 2, 3 Salve todos! Salve todos!... eu ganhei, eu ganhei!” E nenhum de seus coleguinhas apareceu. Ali, apenas alguns pedestres, garis e os pombos se admiravam daquela moça comprida e seminua a balançar o corpo com singular desembaraço.

E foi assim, tropeçando, às gargalhadas e com o coração retinto, que chegou em casa e encontrou a mãe, magra e envelhecida, a colocar a mesa. Vendo a filha despontar na soleira, olhou para o relógio da parede: “Até que enfim, Carmélia, a sopa já estava esfriando.”



20 comentários:

  1. "num ímpeto belchiórico de amar e mudar as coisas" foi inesperado, inusitado e muito criativo (o que não deixa de ser uma justa homenagem ao bigodudo compositor).
    O final, como sempre, surpreende.

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    1. Hahaha vez ou outra entra uma dessas trilhas sonoras. Para mim, um alívio. Você é um leitor especialíssimo, amigo Tião.

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    2. Obrigado, Raymundo. Suas crônicas são dessas coisas boas da vida de quem gosta de literatura.

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  2. Uma verdadeira obra prima. Sentimentos e realidade. Uma retórica sentimental !

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    1. Olá, "Unknown". Agradeço demais a sua leitura e o retorno. Quando postar, por gentileza, "assine", pois algumas pessoas aparecem como "desconhecidas" e, quando conheço, gosto de me "aproximar". Grande abraço.

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  3. Surpreendente. Registro de fatos e sentimentos que nos prendem aguardando o desfecho. Amei!

    Malvinier Macedo

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  4. Malvinier, agradeço muito a sua leitura e retorno. Forte abraço, querida.

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  5. Quantas lembranças nos remente essa crônicas,um fato simples,mas você consegue com maestrias nós proporcionar sentimentos preciosos.

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    1. Muito obrigado, Leonilia, pela leitura e comentário. Abração.

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  6. Muito bom, Raymundo Netto. Para mim um choque quando ela saiu e não encontrou nenhum dos seus amigos.

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    1. Oi, Rosinha. Seria um choque para qualquer um, mas para ela não... apenas uma estranheza, mas a sua vitória era gritante. rsrs Um ótimo dia, querida.

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  7. Uau!!!
    Que final,rs
    assumo que tive ligeira agonia ao constatar o silêncio da praça,tal qual a pequena Carmélia todas as vezes em que era surpreendida ao ser encontrada,ufaa...rs

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    1. Olá (não saiu seu nome aqui), agradeço a sua leitura e o seu pasmo. Abraço.

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  8. Muito bom conto, talvez um dos melhores que já li da sua lavra. A incerteza entre o real e o fantástico me prendeu até o final. Você conseguiu uma narrativa instigante, menos pela singularidade da personagem; mais pela habilidade da linguagem na trama. Valeu, amigo.

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    1. Pardal, bom dia. Muito grato pelo seu comentário, sempre bem-vindo. Espero contar com sua observações preciosas. Agradeço demais. Forte abraço.

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  10. Uma boa dose misturando o real e o fantástico; traquinagens de autor com as eternas categorias de tempo e espaço deixando-nos, aos leitores, vastas possibilidades de pensar a personagem Carmélia. Muito bacana cumpadi véi

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    1. Prof. Macário, bem vindo ao nosso AlmanaCULTURA. Muito feliz de vê-lo por aqui e agradeço a sua leitura e a nova amizade. Estamos juntos. Abração.

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  11. Que conto fantástico,Raymundo! O improvável desfecho, bom demais!!!

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