domingo, 13 de setembro de 2020

"Ora, Sapos?", de Raymundo Netto para O POVO


 Pereira gastava muito dinheiro com dermatologistas.

Há tempos, inexplicavelmente, assistia à sua pele engrossar, descamar, tornar-se áspera e grudenta. O porquê daquilo ninguém sabia. Enquanto isso, o homem mais parecia um gato de tanto se lamber e se esfregar com pomadas, cremes, loções e sabonetes por horas intermináveis, e nada resolvia aquela aparente tragédia doméstica. Para piorar, em uma noite sinistra, não conseguiu dormir. Uma coceira profunda tomava-lhe o corpo e o juízo. Na manhã seguinte, ainda torpe, ao confrontar o espelho... Bufo: havia virado um sapo!

Naquele momento, sentiu-se aliviado, pois temia ser algo mais sério. Afinal, a coceira passou e o mistério estava ali resolvido. Retirou o pijama e, ainda diante do espelho, admirava-se. Pensou: “Gosto do verde...” Foi quando sentiu uma sede danada e correu para debaixo do chuveiro, onde se postou por prolongado tempo.

Após o banho, tentou vestir-se para ir ao trabalho, mas sentindo-se sufocado colocou apenas a gravata e o chapeuzinho, saltando apressado para tomar a sua habitual condução.

Nem é preciso dizer o quanto o coitado penou. Não é fácil enfrentar as extensas filas, o empurra-empurra e a multidão que entope os transportes urbanos. Com sua estatura e aquelas patas não conseguia se segurar em canto nenhum. Apenas por um milagre não foi pisoteado no bonde pelo populacho insensível às suas debilidades.

No escritório não seria diferente. Recriminaram o seu atraso e a deselegância de seus trajes. Também se tornou alvo de chacota alheia, logo apelidado de “Pereireca”. Aliás, com os novos e grandes olhos, enxergava melhor do que antes e descobria os colegas que lhe apontavam o dedo, riam-se dele e apostavam naquela demissão.

Pereira sentiu-se humilhado, derrotado, solitário como uma freira. Como nunca, sentia na pele verruguenta um constrangimento moral próprio das coisas desnecessárias da vida.

Seu retorno para casa naquele dia foi devastador. Não havia sapo mais desanimado no mundo. Foi quando passava pela calçada a Rosie, uma moça de cabelos curtos, piercing no nariz e braços tatuadamente coloridos. Ao ver aquele sapo, parnasianamente aguado, arrastando a maletinha, seu coração ambientalista e nerd partiu-se em cacos. Soluçava o Pereira com o dedo em riste e o lábio inferior tremulento: “Meu pai não foi rei!”

Empática, Rosie o abrigou em seus braços sinceros, aduziu a face anfíbia aos seus lábios e admitiu-lhe um beijo largo e quase escatológico.

Daí, aconteceu o que acontece todos os dias quando as mulheres beijam os sapos: eles desencantam! Só que, em vez de príncipe, havia apenas o nosso Pereira.

A Rosie, que não era muito afeita a homens e se dava melhor com os bichos, ali mesmo rompeu a relação, bateu as asinhas e venceu o horizonte para sempre.

Só posso dizer que o Pereira um dia encontraria alguém que o amasse do jeitinho que ele era, homem ou sapo, e que nas noites de chuva, após tórrido instante amoroso, poderíamos ouvi-lo a coaxar, enquanto comia moscas, na beira do rio.




13 comentários:

  1. Rosie Fly... " Fly me to the moon/ Let me play among the stars / Let me see... " Like Rosie Fly, from the moon, one can see: É pau.. oops... é Kafka, é pedra.. oops... é Manuel, é o fim do caminho... oops.. é o início de mais uma semana... Há uma mosca pousada na pia do banheiro _ não parece ser a da sopa do Raul, vê-se que tem um perninha tatuada e um aspecto nerd de ser... de ser... Rosie... Rosie! Não. É muita viagem. Um beliscão, um ósculo, o que vai melhor para um início de semana? De eira em beira, o melhor talvez seja está linha que não separa o real da fantasia. Rosie, um ósculo, por favor! Essa pata já começa a...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. KKKKKK Meu Deus, professor Armando, você está com febre? Hahaha

      Excluir
  2. Como ri! Muito criativa e engraçada. Uma de suas melhores crônicas, seguramente.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Imaginemos nós, Tião, numa situação dessas... rsrs Sou muito novo para virar sapo. Quero não.

      Excluir
  3. Eita, Sapopereira! O Gregor Samsa dos trópicos rsrs

    ResponderExcluir
  4. Nova versão de Bandeira??? Uma pergunta?!?!?! Ele gostou do verde!!! Do verde??? Existe sapo verde??? !!! Sei não!!! Talvez no mundo das narrativas fantásticas...sei não...só sei que se encontrar um sapo verde por aí, eu beijo!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Hahaha Tem sim. O espectro no reino dos sapos é extenso... Tem para todos os tipos e gostos. Frankenstein, esse eu sei, não era verde. rsrsrs

      Excluir
  5. Que beleza, Netto. Entre anfibologias e anfibiologias, seu conto tem o encanto das fábulas e o humor das blagues modernistas. Seu Pereira tem a circunspecção parnasiana de um ser (ou não ser) que expôs a alma à flor da pele. Depois de Ovídio e Kafka, recebo com a simpatia restaurada ("o tempora, o mores" ) sua metamorfose ambulante, ou melhor, saltitante.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Hahaha Muito obrigado, Leite Jr., pela sua leitura e gentil retorno. Abs.

      Excluir
  6. Ahahaha..... Bom demais, Raymundo Neto, seus textos. Eles estão recriando e revitalizando o fantástico - um realismo-mágico do século XXI.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Grato, amigo Pardal, pela sua leitura e entusiasmo. Abraço.

      Excluir