“As aparências enganam”, ditado velho já
escaldado pelo tempo e pelo uso irresponsável de bocas cruéis, sem parcimônia,
abundantes de maldades ou desilusão.
Triste não é apenas aquele chora, mas
também aquele que ri, e ri muito, sem motivos, ou com todos eles chacoalhando
os cantos da boca, apertando os dentes, ou o pescoço, mesmo cutucando os
pesadelos nas esquinas mais violentas de sua cabeça.
Lembro-me da música, “Levo esse sorriso
porque já chorei demais...”, e ela consola: “Penso que cumprir a vida seja
simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente”.
Li, há algum tempo, um romance, a
obra-prima do escritor e jornalista italiano Dino Buzzati: “O deserto dos
tártaros”. Difícil leitura, mas não por culpa do autor. Aparentemente um livro
monótono, tenso, marcado por uma sequência de nadas e vazios desconcertantes.
Giovanni Drogo, um jovem tenente, recebe posto no forte Bastiani, na planície fronteiriça
de um cantinho qualquer esquecido do “mondo”. Como todo bom soldado queria ser
herói, fazer algo de relevo, ter uma carreira brilhante, viver grandes amores, ganhar
o mundo. Só que não. Ao percorrer a enfadonha trilha militar do forte, a cada momento
tinha a certeza de que só podia ser um engano. Nada mais morto, mais
desinteressante, mais inútil que aquela vida besta, a ponto de escrever cartas
mentirosas na tentativa de se enganar, antes do outro. Tentou sair do forte,
procurar outra ocupação, pedia transferência aos seus superiores, e tudo isso
lhe parecia sempre bem possível, pelo menos é o que, pacientemente, lhe diziam,
mas nunca, nunca que saía de lá. Alguns o alertavam do que o forte poderia
fazer com ele se não saísse logo e, mesmo assim, deixou-se vestir o manto de
esquecimento.
O tempo passou, Drogo sendo promovido,
anestesiando-se ao som regular dos passos das sentinelas, virando todo apatia.
Seus nervos pouco o beliscavam na procura das glórias roubadas, do sonho a
congelar por trás das muralhas nuas em noites de lua, à espera dos tártaros, povo
bárbaro que, tais quais as lendas, um dia chegariam e tentariam destruir tudo.
Neste dia, ah, neste dia, então, sim, toda a sua existência teria um
significado e a sua vida valeria a pena. Bastava-lhe este dia para coroar de
louros a longa espera. Mas os tártaros, se é que um dia existiram, nunca
chegavam. Via sinais: pequenos pontos luminosos em meio a sombras noturnas, um
fluxo misterioso na linha do horizonte, murmúrios noturnos com os ventos, e, de
repente, mais nada. Apenas o nada de todos os dias de uma vida inteira!
“Numa fenda dos penhascos vizinhos, já
encobertos pela escuridão, atrás de uma caótica escadaria de cristas, a uma
distância incalculável, imerso ainda no sol vermelho do poente, como que saindo
de um encantamento, Giovanni Drogo avistou um morro pelado e no topo dele um
traçado regular e geométrico, de uma singular cor amarelada: o perfil do forte. Oh,
tão longe ainda. Quem sabe quantas horas de estrada, e seu cavalo já estava
esfalfado. Drogo o fitava fascinado, perguntava-se o que podia haver de
desejável naquele casarão solitário, quase inacessível, tão separado do mundo.
Que segredo ocultava?”
O livro, meus amigos, é de uma
inquietação poética. Uma grande interrogação mancha de filosofia as páginas vagarosas
que parecem nos capturar no mesmo exílio de Drogo, sendo capaz de nos fazer sentir
o hálito úmido das paredes de pedra, cobertas de limbo, do forte Bastiani, e de
ouvir o silêncio frio das noites angustiantes que custam a passar. Fazemos
escolhas, mesmo quando não conscientes, renunciamos da vida, nos tornamos
estrangeiros de nós mesmos no passar dos anos de “O deserto dos tártaros”. Assistimos
a nossa história ser consumida numa fogueira silenciosa, dia após dia, em troca
de nada, a não ser da paciente espera de algo que, chega a parecer, nunca
acontecerá! Descobrimos, entre uma xícara ou outra de café ao pé da janela
triste caiada em luar, que o maior deserto é aquele que colhemos em nosso peito;
aquele que, lentamente, nos devora o corpo e a alma, e, quando menos esperamos,
o mastigamos e o encontramos entre os dentes em nome da nossa cara e amante solidão.
Amigo, adoro o trabalho de Buzzati. Este livro, apesar de ser a "obra-prima" dele, eu nem gosto tanto. Recomendo os dois livros que ele, além de escrever, também ilustra: A Famosa Invasão dos Ursos na Sicília [infanto] e Poema em quadrinhos.
ResponderExcluirOutra vertente dele que eu gosto muito é a mistura que ele faz entre Ficção fantasiosa e crônica, nos livros As Noites Difíceis e Naquele Exato Momento!
Boas dicas. Gosto também de "A Queda da Baliverna", de contos fantásticos.
ResponderExcluir