“Às
margens da lagoa que lúcia e lenta soluça, a avarandada rotina da casa grande
do Sítio Castelo era perturbada pela chegada de dois homens que contendiam
entusiasmados: Demócrito Rocha e Antônio Garrido.”
Assim
iniciava a minha crônica “Maracajá, já!”, publicada em O POVO, em 6 de novembro
de 2009. Há pouco conhecera pessoalmente a d. Lúcia Dummar, em sua casa. No texto,
então, supunha seu pai, jornalista que fundou O POVO, chegar naquela varanda, à
hora quente do almoço, trazendo com ele – por não gostar de almoçar sozinho – o
poeta Antônio Garrido, sendo que, na realidade, Garrido era o pseudônimo com
que Demócrito assinava seus poemas. O poeta, “em mangas de camisa”, tentava
convencer Demócrito, de paletó, a trazer de volta a revista literária
“Maracajá” que, ao final da década de 1920, divulgava e defendia o modernismo
feito no Ceará.
No
casarão, ouvindo d. Lúcia, sentia-me a voltar no tempo, mas não no meu, e sim
no de Demócrito, de Lúcia e de tantos outros personagens tão reais e palpáveis
na voz dela. D. Lúcia me apresentava a um papagaio, companheiro de estima do
filho, também Demócrito, e a um cabritinho, o Biel, que tentava surrupiar uns pastéis
a mim oferecidos. Ela havia lido o meu “Cadeiras na Calçada”, e confirmava as
suas histórias, dizia que poderia ter vivido naquele livro. Depois, levou-me
para conhecer as aves do quintal, o seu memorial d’O POVO, da PRE-9, e a
biblioteca onde guardava livros doados por amigos. Orgulhava-se: “Meu filho, eu
gosto muito de ler. Leio todos os dias.”
Almocei
na casa essa única vez – a profa. Adísia me dizendo que teria que me servir, no
mínimo, três vezes – e também provei os doces de d. Lúcia. Prometi voltar, e o
fiz depois de muito tempo. Nesses intervalos de ausência, vez ou outra, ela me
ligava para falar da última crônica lida. Que as cortava do jornal e as
colecionava: “Você está fazendo uma carreira muito bonita”, dizia gentilmente.
Cheguei
a ir na sua casa outras vezes, nunca pensando que seria a última, e ficando
pouco devido ao meu tempo de sem tempo de sempre, embora ela tivesse muito o
que contar, não só do passado, mas do presente também. Cheia de opiniões,
sabendo de minhas atuais funções, aconselhava-me com a segurança de quem já tinha
vivido muito, mas não tudo!
Em
maio deste ano, na série de crônicas de aniversário d’O POVO, escrevi uma
dedicada à “Senhora da Mansão Castelo”: “Era 6 de maio de 1917. De repente, a
fisgada e o entreolhar: ‘Acho que é agora!’ E foi. De sete meses nascia a
caçula. Sem aviso, sem banheirinha, sem fraldas ou sapatinhos. Seria Maria da
Glória, como a vó, dependesse de Demócrito, mas Creuza quem decidiu: Maria
Lúcia! Sim, Lúcia, a ‘iluminada’, ainda nos braços da mãe. Nada tinha, mas nada
lhe faltaria. Logo os amigos, parentes e vizinhos fizeram-lhe o enxoval.”
E
Lúcia era mesmo viva, falante e determinada. Com seu carisma, chegou a ser
candidata à Rainha dos Estudantes Cearenses, e por eles apoiada em campanhas
festivas, desistindo, porém, de sua candidatura pela exigência do pai. Até o
poeta Antônio Sales, grande admirador da jovem Lúcia, escreveu-lhe um dia: “Mas a flor, seja qual for, /Há de sentir-se
humilhada,/ Ficar de inveja ralada/ De não ser Lúcia e sim flor.”
De fato,
penso que d. Lúcia é uma daquelas pessoas que não deveriam morrer, pois ela já
não se cabia de tantas histórias, experiências, vivências e realizações, que
lhe faziam a vida não ser mais tão e somente sua, e digo isso com toda a
convicção de quem compreende de pertencimento alheio às coisas imateriais.
Assim, como o jornal O POVO, hoje, independentemente de quem o comanda e dos
rumos de sua direção, é um patrimônio cearense, uma testemunha viva de nosso
existir temporal. Ele é pelo que já foi e será, coisa que não se compra nem se
inventa de um dia para outro.
Lamentei
a passagem de d. Lúcia, todavia, lamento ainda mais pelo que não poderemos esperar
e ter dela: o seu tempo! Fica na memória, selado, esse nosso grande encontro de
vidas “por entre coqueiros
e plantas emplacadas delicadamente no jardim colorido do vermelho das araras e
do canto dos sabiás. As pétalas de murta, estouvadas no chão, [que] sacolejavam
com o vento de novembro deixando o varandado para trás. As lembranças
persentiam por entre pesadas talheres que tilintavam sob a inicial bordada ao
guardanapo e com o vozeado alegre de crianças do passado [Albanisa, Carmen
Lúcia, Lúcia Helena, Lúcia Maria, Dummar Filho] à comprida mesa branca de
almoço. Estalando as colheres de cremosos doces de leite, a memória perfumosa
do tempo emergia viva como NOTAS do velho rio, artéria aberta, que na pena do
poeta vai morrendo e resistindo... morrendo e resistindo... resistindo
sempre... como as rochas.”
Querido amigo, sua crônica é belíssima! Parabéns!
ResponderExcluirSeu texto fez-me lembrar que há vinte anos rascunhei algo, em uma das minhas muitas crises de saudade, cujo tema era “O lado de cá e o lado de lá da lagoa”.
O lado de lá da lagoa pertencia à “Lúcia Dummar” (expressão do povo de Messejana).
Vou rever os meus bosquejos e, encontrando o prefalado escrito, se a coragem deixar, enviá-lo-ei a você.
Abraços.
Lucneide Souto
Lucineide, agradeço a leitura e aguardo seu retorno com o texto. Forte abraço.
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