domingo, 30 de novembro de 2025

"No Centro do Mundo: A Festa Literária de Ibiapaba", de Raymundo Netto para O POVO


Tive a feliz surpresa de ser um dos convidados para a estreia da primeira Festa Literária de Ibiapaba, a FLIIB, tendo como palco e cenário a antiga Aldeia Ibiapaba, depois Vila Viçosa Real da América, até ser denominada Viçosa do Ceará, uma das mais belas, aprazíveis e poéticas pretensões de moradia humana em nosso estado cearense.

Entre os dias 20 e 22 de novembro, dava-nos a impressão de que a sua população dobrara em número, acompanhando-a durante todo o dia enfileirada ou em grupos, entre artistas, livreiros, leitores, indígenas – principalmente os tremembés de Almofala –, professores e alunos das escolas privadas, públicas municipais e do IFCE-Tianguá tomando, com as bênçãos de Nossa Senhora da Assunção, a praça Clóvis Beviláqua – ele ali também nos assistia a meditar –, os quiosques e o teatro Pedro II nas mais diversas atividades GRATUITAS: rodas de leitura, serenata em calçada, feira de livros, cordéis e quadrinhos, bate-papo com escritores, oficinas, lançamentos de livros, cine-debate, contação de histórias, saraus, declamações, shows musicais, biblioteca móvel, percurso sentimental pela cidade e outras iguarias culturais refletidas nas cores de um casario antigo, não apenas cenográfico, como em Fortaleza, mas real, que além de encantar a festa e deixar tudo mais belo, ainda nos contava histórias, tradições e memórias.

Com o tema “Entre Montanhas e Palavras: a Ibiapaba em Prosa e Verso”, se deu por promoção da Secretaria de Turismo e Cultura do Município, com apoio do Governo Federal, via Política Nacional Aldir Blanc, e com outros importantes apoiadores, como a Câmara Cearense do Livro, BNB, Sesc, Bece, Secult, SEBP, IFCE etc. Tudo devidamente orquestrado pelo competente secretário historiador Gilton Barreto – que me outorgou, há alguns anos e guardada com carinho, a Comenda General Tibúrcio –, com a grata e acertada aprovação do prefeito Eurico Fontenele Arruda. Na curadoria, escritores: Renato Pessoa e Léo Mackellene.

Tive o privilégio de ser convidado para dividir uma mesa com a premiadíssima escritora Marília Lovatel, não podendo eu deixar de aproveitar a oportunidade e lançar luz ao nome do saudoso prof. Juca Fontenele, autor das “Viçosalianas” que me apresentaram a essa “Eldorado cabeça-chata”. Também ali, passei raspando quase como oração nas paredes do casarão de 175 anos do querido farmacêutico Felizardo de Pinho Pessoa, cujo filho, o Césinha, memorialista sentimentalíssimo, ainda tive o prazer de encontrar.

Tomei excelentes cafés em frente à praça General Tibúrcio, jantei no restaurante Silvestre, visitei a Casa de Licores do seu Alfredo Miranda, agora Museu Orgânico do Sesc, e, no local onde antes funcionava a tradicional Sorveteria Bem-Me-Quer, soube mais a respeito da renomada cachaça Viçosa Real, da família de Clóvis Mapurunga, artesanalmente fermentada e destilada em alambiques de cobre e maturadas em barris de madeiras nobres. Para quem aprecia destilados, é uma experiência imperdível.

Saí de Viçosa maravilhado, certo de que essa foi a maior, a mais original e a melhor festa literária que tivemos em 2025. Não há dúvida de que todo o deslumbre ofertado espontaneamente por essa cidade-tesouro-patrimônio contribuiu para nos proporcionar esse efeito mágico mais que necessário para não deixar que nos esqueçamos do nosso propósito como agentes de cultura, guardiões de nossa história e memória, multiplicadores de nossas identidades para as atuais e futuras gerações.

Parabéns, FLIIB e a todos e a todas que a sonharam e presentearam o Ceará com o seu legado. Que venham a segunda, a terceira, a quarta...

 



 

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

"Almir Mota: um menino a contar histórias", de Raymundo Netto para O POVO


No sertão cearense dos Inhamuns, abençoado por Nossa Senhora da Purificação, encontra-se hoje a ainda pequena Saboeiro do Ceará.

Cruzando o pátio rústico da igreja matriz, com detalhes coloniais, cercada de coloridas casas geminadas e beirando o mercado municipal, Almir Mota, um menino falante de olhos miúdos, aos seis anos, impressionava o populacho a já contar causos que ouvira de seu pai Osmir e de sua vó Canela, a dona do sítio Cabeça do Boi.

Com pouco, partiria de sua terra natal para residir em Iguatu, onde aos 16 anos estrearia no jornal literário O Tostão com o poema “Pai Democrático”, uma homenagem a Tancredo Neves. Aquela simples publicação “ficou para a vida toda”, e ele não parou mais.

Logo, reuniria um grupo de amigos e juntos produziriam folhetos de poesia mimeografados. Mais tarde, saraus itinerantes, vendendo os seus folhetos, então, impressos em gráficas, o que continuou mesmo quando Almir deixou o interior para aventurar-se na capital.

Em Fortaleza, ingressou no grupo Metamorfose de teatro amador, seria um dos criadores da Cia. Estripulia de Teatro de Bonecos (no futuro, também dirigiria o grupo Garunjos), criaria a Fundação Terra e trabalharia como gestor cultural. Até que, em 1999, publicaria a sua primeira obra literária para crianças: O Cavalinho Amarelo.

Ele acredita: “Para escrever para criança, você tem que se divertir como criança” e que a criança “é um leitor mais exigente, porém, mais honesto”.

Após “O Cavalinho...” publicaria mais de 25 livros para esse público que adora ler e vê-lo a contar as suas histórias, sendo muitas dessas obras publicadas por diversas editoras e adotadas em escolas de muitos estados brasileiros há anos.

Em 2009, iniciou as atividades da Casa da Prosa, sua editora e produtora cultural, no mesmo ano em que seu livro A Fera do Canavial (para jovens e adultos) recebeu o prêmio nacional “Literatura Para Todos” do Ministério da Educação.

O Almir, que não se restringia a escrever e a contar suas histórias, cresceu ainda mais como produtor cultural e militante das causas do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas, desenvolvendo projetos reconhecidos pelos seus resultados e seu poder de agregar artistas, professores e leitores. Entre eles: a Escola da Natureza, A Casa do Conto, a Feira do Livro Infantil de Fortaleza (em 7 edições) e a Feira da Literatura Cearense, a Bolsa de Letrinhas (Bolsa Funarte de Circulação Literária), Lamparinas de Histórias e o Baú de Leitura – ação que já beneficiou, com doações de livros, mais de 500 bibliotecas e espaços de leitura no Ceará, Piauí, Bahia e Minas Gerais.

Todos esses projetos são marcados pela sua liderança, competência e com muito humor, mesmo quando diante das adversidades que os artistas são obrigados a enfrentar se quiserem continuar no ramo, no qual ele traz 40 anos de contínua atuação.

Contudo, como é apaixonado por paisagens, é um viajante incansável, ao lado da esposa, Júlia Barros, uma excelente contadora de histórias (a melhor), já tendo divulgado o seu trabalho também no exterior, como no México, Colômbia, Costa Rica e Portugal.

Em 2025, Almir Mota chega aos 58 anos trazendo consigo uma marca e um currículo admirável de produções e de muita resistência, além de reforçar as visitas às escolas para divulgação de sua extensa obra, agora também reimpressa.

Assim, durante a celebração do Dia da Literatura Cearense, 17 de novembro, dedico minha homenagem a Almir Mota, um menino grande que cedo descobriu na vida o encanto das palavras e a esperança de mundo melhor em uma sociedade leitora.





 

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

"Nariz", de Raymundo Netto para O POVO


Como uma princesa, quiçá rainha, assim era tratada Rosânia, filha única do respeitado empresário Cirano Ventes. Aliás, o sobrenome do pai lhe dava salvo-conduto, laissez-passer, como diziam nas colunas sociais, a qualquer local daquela cidade, mesmo os inatingíveis. Para ela não havia “depois”, “não pode”, “não dá”, coberta que era por uma certa vaidade deificada. Assim, não seria possível supor que ela, a filha, tivesse uma ojeriza tão medonha daquele pai.

Nunca a revelara a ninguém, mas via no narigão do pai um não sei o quê de repulsivo, asqueroso, com ares de legítima bruxa da Branca de Neve. Tinha tamanho pavor que assegurava: era aquela “coisa” a responsável por seus piores temores infantis. Tanta doçura e dengos de seu pai não conseguira apagar a imensa sombra que pairava maldita no imaginário virgem da garota.  

O sr. Ventes, coitado, já lhe percebia há muito essa reserva e distância, mas pensava ser natural pela sua condição feminina: “Se fosse homem, seria diferente...”

A mãe, entretanto, via com anormalidade a incompreensível aversão, que a fazia inventar desculpas para sequer cearem juntos, ou desviar o rosto com náuseas quando ele a acarinhava em aniversários e natais. Aliás, em seus álbuns de festa, as fotos ao lado do pai eram sumariamente descartadas. Quem os visse, pensaria ser Rosânia filha só de mãe.

Um dia, já moça, decidira casar. O noivo, bom rapaz e de família, era um príncipe, dizia.

Algumas horas antes da cerimônia, porém, no mais prestigiado salão de beleza da capital, o maquiador Paulinho lhe chegou cheio de mimos, afagando-lhe as madeixas e tocando-lhe o rosto com suavidade quase que sagrada. Ela, como uma rosa de jardim, vaporava alegrias, até que, inesperado, Paulinho pôs uma mão na cintura e com a outra tamborilou a escova no queixo. Silenciado, fitou a moça ao espelho e disse: “Mulher, nós teremos que usar sombra e pontos de luz para suavizar e disfarçar o volume...”

— O volume de quê? O que você quer dizer?

Diante da mudez repentina e geral, Paulinho torceu o canto da boca e disfarçou: “Eu? Nada, meu bem. Nadinha... só...”

— Você insinuou alguma coisa, sim... Diga. Repete!

O rapaz, desafeiçoado a frescuras e achaques, olhou para as colegas que acenavam súplices com as cabeças e indicadores e, num êxtase, rodou a cadeira de Rosânia e berrou numa impiedade carrasca: “Olhe aqui, minha filha, nós vamos ter que dar um jeito para o seu nariz não aparecer mais do que você na filmagem. É isso. Pronto. Falei!”

A noiva encheu-se de lágrimas e tornou ao espelho, como se numa primeira vez. Sim, estava lá, o tempo todo, bem diante do seu... nariz: era o narigão do pai! Sem tirar nem pôr, o mesmo fantástico monstrengo!

Correu pelo salão um brado megaestratosférico jamais ouvido. Há quem nos conte que não ficou um único espelho ou copo em pé. Rosânia saiu correndo à rua, destroçando o penteado e escondendo a sua vergonha entre as mãos, seguido por Paulinho, a equipe do salão, a mãe e o gordo pai: “A culpa é sua! É sua!”

Naquele dia, o casamento não aconteceu e ela não poria mais o nariz fora de casa. Da rua, por muitos anos, quem olhasse a janela triste do primeiro andar, poderia acompanhar o seu perfil generoso, a caminhar de um lado para outro, rodeado de pesadelos num quarto onde não entraria jamais um novo amor, muito menos outro espelho.






 

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

"No Canto da Sereia", de Raymundo Netto para O POVO


“Cavalo-Marinho, mãe. Ele pegou um cavalo-marinho”, apontava a menina para o irmão Zenor, que chegara da praia naquele momento, esbaforido e delirante, agarrado suspeitamente a uma garrafa velha cheia d’água do mar.

Correu ao seu quarto ainda ouvindo a irmã resmungar, após a desatenção da mãe: “Deixa seu irmão, menina! O bichinho...”

No quarto, Zenor botaria a garrafa em cima da cômoda, abriria a janela e passaria o resto da manhã apreciando o seu achado: uma sereia! Ainda pequena, uns 10 cm. A criatura estava naturalmente incomodada, debatia-se contra o plástico e, por vezes, parecia sufocar. “Muita areia...”, pensou Zenor, que logo daria um jeito de pedir ao pai para comprar um aquário de verdade.

Anos se passaram e muitos aquários quebraram enquanto a sereia crescia, sempre aos olhos atentos e obsessivos de Zenor. Os seus pais achavam ótimo que o rapazinho tivesse encontrado um hobby, pois não saía de casa, portanto não tinha amigos, não falava com ninguém, era absolutamente alheio a tudo e a todos, menos à sua sereia.

Enquanto tratava seu aquário, como em um pacto de silêncio eterno entre ambos, passava horas a observar fascinado, quase babando, a sua presa. Os compridos e encrespados cabelos esverdeados, como algas, oscilando lentamente ao movimento do corpo muito alvo, pele aparentemente de bebê, embora áspera. Os seios salientes e sem aréolas, o majestoso pescoço, a ausência de lábios, pequenas brânquias atrás das orelhas, a cauda longa de escamas denteadas e brilhantes. A irmã, quando criança, gostava de ajudá-lo nessa tarefa – tinha afeição pela criatura. Porém, adolescente e feminista, tornou-se contrária ao absurdo cativeiro. O pai, interessado apenas nas coisas do mundo, pensava em como aquilo um dia poderia contribuir nas finanças domésticas. A mãe apenas a julgava pálida e magra demais.

Por curiosidade, vez ou outra algum dos vizinhos adentrava o quarto. Também fotógrafos de revistas científicas e da imprensa local buscavam frestas de janelas para captar imagens da curiosa fêmea marinha. Todos eram violentamente enxotados pelo rapaz grandalhão, obeso e de fala pouco compreensível que se tornara o Zenor.

Tinha ele outro segredo. À noite, nunca conseguia dormir. Ao travesseiro, percebia os olhos dela muito abertos – naturalmente, não tinha pálpebras. Aquele olhar fixo em sua direção trazia o mesmo ar acusador e odioso de todos os dias. Estaria acordada? Estaria dormindo? Não sabia. Contudo, a brilhância do olhar amarelado, no negrume do quarto, parecia a de um farol. Pela manhã, estava em ruínas à mesa do café, preocupando os pais pela sua saúde precocemente debilitada.

Quando adulto, morava apenas com a mãe – o pai falecera e a irmã comprou um apartamento.

Nesse tempo, guardava a sua sereia numa caixa d'água no quintal. 

Era meio-dia. Sua irmã veio visitá-lo e almoçar com ele, a pedido da mãe em viagem. Ele já estava à mesa, quando ela dirigiu-se ao quintal para dar um “oi” à sereia. Não a encontrou: a caixa d’água vazia, encostada ao muro. Voltou à cozinha, muito bagunçada, e perguntou ao irmão por ela, o que acontecera com ela. 

Esfregando a manga do suéter na boca oleosa e garfando o prato, ele apenas respondeu: “Tem gosto de salmão... Adoro salmão”.

E desde esse dia, Zenor dorme um sono formidável, sonhando sempre com outras sereias.

 

 


 

"Maravilhamento: ler é isso!", de Armando Lucas


“Temos direito à fabulação é uma necessidade humana, parte constitutiva da sua realidade.”

 

Árvores centenárias desenham no chão da praça oásis de frescor. Nessas manchas temperadas, mesas se alinham ao longo do passar da gente.  Variam em quantidade de segunda a sexta.  Mas todas têm o mesmo tamanho.  E todas têm duas cadeiras que se entreolham por sobre toalhas de diferentes estampas, de bordas rendilhadas, que colorem os dias do amanhecer ao entardecer.

Agora, as cadeiras esperam e as mesas descansam. Elas, como as pombas da praça, saíram em revoada na busca das mãos que erram neste lugar de passagem.

Ele chega.  Puxa a cadeira.  Senta-se à mesa que tem um vaso ao centro, a única. 

Ela chega. Afasta o vaso para um lado, ajusta-se na cadeira e pede-lhe as mãos.  Ele pousa as mãos com a palma voltada para a estampa da toalha, acendendo-lhe as cores que se refletem em arco-íris nos olhos dela. Ela toma uma das mãos, a que está à sua direita; desemborca.

Suas costas caem no encosto da cadeira.  Logo seu tronco se volta pra frente e ela toma a outra mão. A cadeira cai de pernas pro ar.

De pé, ela anuncia:

- Ele voltou!

As outras acorrem. “A palma das mãos dele", ela aponta.

Todas olham; e todas veem; e todas leem; e todas exclamam com olhos acendidos de maravilhamento arco-íris; e todas anunciam, em regozijo:

- Ele voltou!




 

sábado, 4 de outubro de 2025

"A Capital Cearense dos Quadrinhos: Pacoti", de Raymundo Netto para O POVO

Pôster da Mostra. Autoria: João Belo Jr.
Clique na imagem para ampliar!

Pacoti, a “Capital Cearense dos Quadrinhos”, em 2025, recebeu, entre os dias 2 a 4 de outubro, a terceira edição da Mostra Sesc HQ.

Como nas edições anteriores, a equipe técnica do Sesc preparou uma série de atividades para o público presente. Entre elas: lançamento de livros, palestras (com a participação de Paulo Monteiro, responsável pelo Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, em Portugal), oficinas (quadrinhos em sala de aula, desenho para quadrinhos, zine, roteiro para histórias em quadrinhos e desenho de personagens de mangá), feira de quadrinhos (Reboot Comics, editoras Avoante e Riso), teatro de bonecos (Grupo Formosura de Teatro, Bricoleiros e Companhia de Teatro Epidemia de Bonecos), apresentações musicais (Escola de Música de Guaramiranga, Escola de Artes BCA de Pacoti, banda Dona Zefinha, Batuta Nordestina e DJ Ada Porã), oficina de brinquedos ópticos (J. Cambé), disponibilização do serviço da Biblioteca Móvel do Sesc e a Exposição do Mendez (1907-1996), cartunista e caricaturista cearense de grande renome nacional.

A Mostra, desde sua primeira edição, lança a coleção DISCOnversando, álbuns em referência a LPs de artistas cearenses, adaptando as suas faixas em formato de HQs. Foram agraciados: “Além das Frentes”, de Eugênio Leandro, “Avallon”, de Abidoral Jamacaru, e, este ano, “Retrato”, de Luiz Fidelis. O artista, que é um dos maiores compositores e intérpretes de forró da atualidade, esteve na Mostra e apresentou-se no “Concerto Desenhado”, show musical no qual as HQs criadas para o álbum são projetadas em grandes telões de LED durante a apresentação. A maioria dos quadrinistas (desenhistas, roteiristas, coloristas) que participaram do álbum também se apresentaram durantes esses dias, falando sobre a sua carreira e o seu processo criativo.

Além das esculturas gigantes e coloridas de “Reco-Reco, Bolão e Azeitona”, personagens do quadrinista cearense Luiz Sá (1907-1979), desenvolvidas por Dim Brinquedim para receber os moradores e visitantes de Pacoti ao lado do arco de Nossa Senhora de Fátima, o município recebeu a do “Jumento Wanderley”, criação do quadrinista J.J. Marreiro.

Dez anos depois da criação da sua primeira sede, O Ecomuseu de Pacoti, parceiro do Sesc na Mostra, sob a direção do historiador Levi Jucá, recebe uma nova sede, conseguindo o grande feito de conservação e preservação do patrimônio arquitetônico da cidade, ao transformar a antiga sede da Delegacia e Cadeia Pública de Pacoti em um riquíssimo equipamento cultural, no qual, entre outros, receberá o acervo de Mário Mendez.

Desde a sua primeira edição, a Mostra reconhece, por meio do Troféu Luiz Sá, profissionais que têm relevância na história dos quadrinhos cearenses. Este ano, a comenda foi entregue com toda justiça ao quadrinista e professor Daniel Brandão, fundador em Fortaleza do Estúdio Daniel Brandão, escola de desenho, quadrinhos, mangá e outras artes gráficas que, há 23 anos, promove a Nona Arte e forma não apenas quadrinistas, mas desenhistas e profissionais de artes visuais.

Nas edições anteriores, receberam o troféu o professor e historiador Levi Jucá e o quadrinista e cordelista Klévisson Viana.

Por tudo isso e muito mais que sabemos vir por aí, a arte dos quadrinhos no Ceará está em festa. Parabéns ao Sesc, nas pessoas de Luiz Gastão, Henrique Javi, Alemberg Quindins e Sofia Dantas.

Vivas a Nona Arte e a Mostra Sesc HQ de Pacoti!




 

"O Nelson Rodrigues que Habita em Nós", por Beny Barbosa


Quando concluí a leitura de Coisas Engraçadas de Não se Rir, de Raymundo Netto, uma frase de Nelson Rodrigues me veio à cabeça, meio destroçada, é certo, mas o sentido estava ali dentro daquelas histórias. Fui me certificar com a IA se a autoria era dele e pimba! Era mesmo: “o moralista é um cínico disfarçado”.

O título, muito bem elaborado, já indica que teremos leituras paradoxais entre o que vem a ser engraçado e a desgraça humana. Aquilo que culturalmente não é aceito pela sociedade conservadora é disfarçadamente aceito sob olhos com espasmos de miopia. Desse modo, Raymundo Netto, de modo muito peculiar, à Nelson Rodrigues, nos joga na cara estruturas sociais que, apesar das transformações ocorridas ao longo do tempo, ainda permanecem lá, sólidas, resistentes e, muitas vezes, violentas.

Dadivosa, Bigode, Eudócia e Ozires Filho são personagens fictícios, mas que andam por aí: em bares, em mercados, em igrejas, em escolas e em...prostíbulos. Caso a gente frequente um desses lugares criados pela civilização burguesa, certamente nos deparamos com eles e elas, mesmo usando nomes diferentes para se disfarçarem e andarem por aí, impunemente, alheios às críticas dos hipócritas de plantão. E sorvendo os seus desejos mais íntimos, daqueles que a gente não admite nem diante do espelho.

Assim como em Nelson Rodrigues, Raymundo Netto tem a coragem de colocar as mulheres em papel de protagonistas, sem medo e dispostas a arcar com as consequências de suas escolhas diante de homens abobalhados, como aqueles criados pela avó. Não vou negar que torci por elas, entre risos e franzir de testa.

“Nerds” me tocou profundamente, quando ele faz uma narrativa forte, utilizando-se, de certa forma, do realismo fantástico. Muito me lembrou de um conto meu (“O Super Kaká”), mas com final diferente. Trouxe à cena, o sofrimento daqueles e daquelas alcunhados de esquisitos por uma sociedade que teima em ser linear.

Coisas Engraçadas de Não se Rir é uma obra que não tem marcação de tempo, mas de modus vivendi de pessoas reais, que vagam entre o aprisionamento e a liberdade de ser o que se é, sem as máscaras sociais que comumente usamos para poder sobreviver.

“A arte é a mentira que nos ajuda a ver a verdade.”  (Nelson Rodrigues)




 

domingo, 21 de setembro de 2025

Programa "Leruaite" da TVC com Falcão e como entrevistado Raymundo Netto



No “Leruaite”, programa do bregastar Falcão, na TVC, entrevista com RAYMUNDO NETTO, escritor, quadrinista, editor e documentarista cearense. Fala sobre sua obra que transita entre o romance, o conto, a crônica e a literatura infantil, com olhar atento para a preservação da memória e da cultura.

Além disso, no programa mais altamente mais ou menos da TV mundial, toda a filosofage ecumênica, piramidal e esculhambativa do Falcão e seus cupinchas.

Assista ao programa, curta, compartilhe e, se quiser, deixe seus comentários.

  ACESSE: https://encurtador.com.br/frqZW



 

"Lendas e Canções Populares: 160 anos", de Raymundo Netto para O POVO


Raymundo Netto, embora tenha um exemplar original de 1865, 
preferiu postar a foto com a obra que teve a honra de editar
(clique na imagem para ampliar)

“[...] desprezado dos salões, encontrarei bom gasalhado na oficina, na choça, no seio do povo; o operário entoará no trabalho estas canções, as crianças as repetirão no lar e o veterano, o recrutado, o escravo, o oprimido... derramarão muitas lágrimas ao escutá-las. E assim, cumprirei a minha missão.”

Foi dessa forma que o poeta Juvenal Galeno (1836-1931) concluiu a “História deste Livro”, uma espécie de apresentação do autor à volumosa obra Lendas e Canções Populares que, em 2025, completa 160 anos.

Avaliando esse texto, vimos que Galeno afirma ser a sua produção poética uma “missão”. Aos 29 anos, tal qual o arquétipo do herói romântico, abraça essa causa com idealismo, sobejado de emoção e se rebelando contra as convenções sociais que, na época, oprimiam – e oprimem – os mais vulneráveis na sociedade, aqueles que seriam eternizados em seu projeto literário: o escravo, o recrutado (da Guerra do Paraguai), o jangadeiro/pescador, o vaqueiro, o operário, os trabalhadores, os analfabetos, as mulheres, crianças e os velhos etc.

Importante destacar: para cumprir essa tarefa, não se recolheu ao conforto do gabinete de sua casa no aprazível cimo da serra de Aratanha. Ele, filho varão daquele que era um dos maiores comerciantes de café no estado, decidiu ser a sua pena uma humilde exploradora, movida pela curiosidade de trilhar a serra, o sertão e as praias em busca da realidade do povo sofrido a quem dedicaria a sua obra: “Acompanhei-o passo a passo no seu viver, e então, nos campos e povoados, no sertão, na praia e na montanha, ouvi e decorei seus cantos, suas queixas, suas lendas e profecias; aprendi seus usos, costumes e superstições, falei-lhe em nome da pátria e guardei dentro em mim os sentimentos de sua alma. Com ele sorri e chorei, e depois escrevi o que ele sentia, o que cantava, o que me dizia, o que me inspirava”.

Para entender um pouco sobre a envergadura dessa obra ímpar na Literatura Brasileira, imagine que ela nasceu em pleno Romantismo: no mesmo ano, enquanto num berço encontrávamos a jovem “Iracema”, de Alencar, noutro estava o título da musa popular de Galeno. Ambos cearenses; obras completamente distintas.

Embora tenha cruzado várias escolas literárias – quase completou 95 anos – e nunca tenha se afastado da romântica, é interessante perceber as notas realistas encontradas em suas canções, provando conhecer bem sobre as tintas com que pintava.

Lendas e Canções Populares, impressa em tiragem pouco comum naqueles tempos, foi um sucesso no Brasil, apresentando o ambiente, os costumes e essas personagens “nortistas” tão exóticas para a corte no sul do país, merecendo uma série de “juízos críticos” que lhe chegariam de diversas regiões brasileiras, assim como também de Portugal, onde lusitanos se entusiasmavam com essas inspirações ingênuas – como a de trovadores – do ainda muito desconhecido povo brasileiro.

Também viriam as críticas, claro, e não poucas, que mereceriam nos próximos anos defesas extensas de um Araripe Jr. e de Franklin Távora, entre outros grandes expoentes literários, como o próprio Alencar.

Juvenal Galeno nasceu em 27 de setembro de 1836. Adorava comemorar seus aniversários, e talvez por isso tenha vivido tanto. Mesmo cego, colecionando moléstias da idade, sem praticamente descansar de sua rede, havia sempre um novo poema.

Nós, seus leitores e leitoras, ganhamos de presente a sua história, a sua luta e a sua obra.

Parabéns, Juvenal Galeno, que vivas na sua justíssima e legítima imortalidade.




 

"Coisas Engraçadas de Não se Rir", por Gabriel Petter


O que seria da literatura sem o temperamento da vida?

Coisas Engraçadas de não se Rir, novo livro de Raymundo Netto, traça a sensação de conversas casuais entre amigos à mesa de um bar, onde as “causas” mais absurdas brotam espontaneamente, como uma licença poética para o excesso de aversão ao mundo “normal”.

Acreditem, essa obra é muito mais comum do que gostaríamos de admitir, principalmente por tratar também de sexualidade e relacionamentos amorosos, campos em que as possibilidades são muito maiores do que as limitações impostas pela sociedade e suas instituições. Aliás, são justamente essas as questões que dominam a totalidade do livro, dividido em 48 textos curtos, transitando facilmente entre crônica e conto, também situados na tragicomédia.

Os deleites e desgostos de vínculos que vão do casamento monogâmico ao relacionamento aberto mostram que não há nada na vida e no sexo, mas que este seja um elemento determinante na vida humana e em nenhum processo de subjetivação. Seja o poeta que ressignifica sua obra para amar pela primeira vez ou o gênero que nutre um desejo secreto pela sogra, como personagens que viajam pelas páginas do livro apenas permeadas por desejos e sentimentos reprimidos, fantasias, fetiches, é isso que os moralistas condenam nos outros, mas não renegam para si.

O que torna esta coletânea de textos ainda mais prazerosa é pensar que, para a maioria das pessoas, é mais cômodo pensar que práticas morais “desviantes” são apenas marginalizadas, restritas a espaços consagrados para os exercícios “perversos”.

O livro é de fato engraçado, mas de uma graça constrangedora. Não para rir. Coisas Engraçadas de não se Rir pode ser adquirido diretamente com o autor e tem ilustrações de Guabiras.

Vale a pena conferir.

 

Para adquirir o livro:

livrodoray@gmail.com (e-mail do autor e chave-PIX para pagamento e envio do endereço para entrega)