domingo, 28 de março de 2021

"Diorama", de Raymundo Netto para O POVO


A campainha da porta tilintava anunciando a saída de Júlio, o servente da “Diorama”, uma loja de taxidermia. O rapaz não escondia de ninguém, nem do patrão, o seu descontentamento com aquele emprego, mas sem outra opção no momento....

O estabelecimento pertencia ao sr. Vitório, homem velho, amargurado, de físico atarracado e ar sombrio, mas extremamente habilidoso com as mãos quando de seu ofício de dar “vida” a animais mortos.

Todos os dias, Júlio chegava e mal recebia uma boa-tarde de seu patrão, liturgicamente empastado por trás de sua mesa de trabalho, avental e mãos sujos de argila ou gesso e os olhos espremidos no mirar profundo de um corpo devassado.

Ali, não havia janelas. À luz apenas de pequenos faróis – e de alguma nesga intrusa de vitrais coloridos da porta –, as sombras tremeluziam no ar inebriado de solidão e silêncios imorredouros. Por todos os lados, prateleiras de livros de zoologia, carcaças, ossos e recipientes de vidro com vísceras conservadas em formol ou álcool, e paredes, teto e assoalho entulhados de animais – ou partes deles – “perpetuados”: macacos, felinos – dos pequenos aos de grande porte –, psitacídeos de diversas cores, cães, tucanos, guarás, gaviões, cobras, iguanas etc.

Pegava a vassoura, o espanador e iniciava a limpeza, assistindo de esguelha ao trabalho meticuloso de Vitório, a compor máscaras mortuárias, conferir medidas corporais, manipular manequins de arames e moldes de resina, curtir peles e couro, colando-os e costurando-os pacientemente.

Não admitia, enquanto isso, “perguntas tolas”, a não ser quando ele mesmo – o que acontecia raramente – terminava a sua peça e, numa admiração michelângica, chegava-lhe junto, maravilhado, impondo aqueles cadáveres revividos aos seus olhos, numa glorificação sinistra e quase divina de sua arte. Depois, a passos leves de se andar em nuvens, conversava com seus animais, chamava-lhes pelo nome, acarinhava-os a penugem ou o pelo, maternalmente admirando-os através dos olhos de vidro colorido e brilhantes de próteses cuidadosamente escolhidas.

Vitório não era querido na vizinhança. “Diorama”, que mais parecia aos vizinhos uma casa de horrores, destoava do bairro a evoluir para um comércio elegante, de avenida próspera e voltada para o futuro. Da mesma forma, os poucos clientes que lhe restaram pareciam tão sombrios e excêntricos quanto ele.

Naquela noite, a campainha tocara uma segunda vez. Vitório, iluminado apenas pela sua luminária de mesa, desconfiou e a direcionou à porta, assistindo o aproximar de um estranho segurando um punhal: “Me passa tudo que tem, velho, senão acabo com você!”

Vitório, como se o ignorasse, mandou: “Fosse embora!”. O bandido, alucinado, pulou sobre ele, derrubando-o no chão. Agarrou-o violentamente pelas alças do avental e o ameaçou. Mas o velho, indiferente, insistiu: “Eu não tenho nada... Mate-me!”

Irado, iniciou-se a pancadaria. Se não dinheiro, qualquer coisa, mas dali não sairia de mãos abanando.

Nisso, o salão é tomado por sons estranhos, crescentes e ensurdecedores: rugidos, guinchos, grunhidos, berros, piados estridentes, passos e bater renitente de asas. Assustado, o larápio, diante das sombras a agigantarem no escuro, tapava os ouvidos, quando sentiu que saltavam por todos os lados sobre ele, mordendo-o, bicando-lhe os olhos, rasgando o seu rosto e a sua pele com garras potentes. Ele gritava, até algo comprimir o seu pescoço, e, mudo, buscou em vão o seu punhal...

Na tarde seguinte, Júlio chegava à loja. O cheiro de químicos no ar. Estranhou a ausência do velho, os livros dispersos no chão, vidros quebrados, gaiolas e paredes vazias. Não havia mais animais, apenas dependurado no alto da parede um corpo humano, um tanto disforme, estripado e com grandes olhos brilhantes de vidro.




 

11 comentários:

  1. Penso, Raymundo, que você você montou esse conto com cuidado e esmero, como trabalhava o velho Vitório. Ficou muito bom, me fez lembrar demais o nosso amigo Poe.

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    1. Zelinha, obrigado. Faço sempre assim, levando em consideração o tempo que tenho: o esmero de 1 semana, o esmero de 1 dia, o esmero para 1 hora... rsrs Mas me esforço, bichinha. rsrs Amador sempre, porém responsável! Avante, Zélia!

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  2. Raymundo, este conto mexe com minha imaginação porque pertence a um gênero favorito para mim. Mais uma vez você foi capaz de me deixar com os olhos grudados no texto, assim como Airton Monte o fazia. E mais uma vez eu constato que escrever é como debulhar palavras e universos do espírito.

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    1. Adoro literatura fantástica "raiz", meu amigo. Vez ou outra escrever à antiga me faz um bem... Obrigado pela leitura.

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  3. Júlio voltou sobre os próprios passos. " Por um triz ", pensou, ao ver o corpo espetado na parede. Há algum tempo Júlio tinha sensações, a mais recorrente era a de que lhe esvaziavam o corpo. Sentia falta de órgãos; não sabia quais, eram sensações. Voltou correndo para casa; morava a poucas quadras daquele ponto. Correu o mais rápido que pôde. Não olhava para trás; outra sensação o aterrava: estariam aqueles bichos todos atrás dele! Chegou, entrou, porta fechada às suas costa. Mal atravessou a sala para um copo d'água na cozinha, a campainha tocou. Sentiu tremerem todos os seus órgãos; estavs inteiro. Estremeceu ainda mais. Soou mais uma vez a campainha; deu meia-volta. Voltou a soar a campainha; à porta, olha pelo olho mágico ( é o novo! ). Mal crê no que vê. Destranca a porta; a porta é aberta:
    __ Seu ..., cai-lhe a língua.
    __ O que é isso, Júlio?!
    __ É qu'escapei por ... Quero dizer ... Podia ter sido eu. O S ... O Senhor não veio até aqui para me levar de volta àquele quadro, veio?
    ___ hummmm ... Não. Vinha passando a caminho do Vitório; estava do outro lado. Vinhas correndo feito um petseguido; acenei e nada. Entraste. Atravessei a rua; aqui estou, mas de passagem.
    __ Não vá, Seu Raymundo Netto! Entre! Ele não está em casa.
    __ Eu sei, Júlio. Eu sei de tudo o que aconteceu lá. Mas é que preciso das duas bolas de gude que Vitório usou nos olhos do cabra; são da minha coleção. Fui.



    Ah! Seu Netto,
    Na mesma noite, tilinta a campainha duas vezes. No primeiro tilintar , tem-se a saída do coadjuvante; no segundo, a entrada do ator principal, aquele que tomaria o espetáculo do quadro só para si. Um quadro e tanto. Pena que Seu Vitório carregou seu diorama para outras plagas. Onde aportará? Quem será o próximo?

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  4. Armando, mais uma vez um conto por cima de outro. Está na hora de você escrever sua prosa. Gostei das bolas de gude. Práticas. rsrs Abração.

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  5. Vibrei com o enredo e o final! "Grande olhos brilhantes de vidro". Massa! É lendo e aprendendo com os mestres. Dei valor de mais da conta, colega Raymundo Netto!

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  6. Vibrei com o enredo e o final! "Grande olhos brilhantes de vidro". Massa! É lendo e aprendendo com os mestres. Dei valor de mais da conta, colega Raymundo Netto!

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    1. Muito grato, Bonfim, pela sua leitura e retorno. Fique conosco no AlmanaCULTURA.

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  7. Aviso

    Raymundo,
    vais a fundo
    dissecando palavras.
    Cuidado, Netto!
    Mira, admira mais de perto.
    Estão vivas. E são bravas.

    Henrique Beltrão
    Ressuscitador de metáforas

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  8. rsrs Obrigado, meu amigo e poeta Henrique!

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