sábado, 13 de março de 2021

"Dadivosa", de Raymundo Netto para O POVO

Dadivosa era mulher para homem nenhum botar defeito. E não apenas homem, pois mesmo as mulheres, que sabemos ter o olhar microscópio e imperdoável para as falhas congêneres, nela, exaltavam: “É perfeita!”

Quando saía à rua, ao final da tarde, pintava de céu aquele chão. Todos queriam saudá-la, dignar-se um seu sorriso – lindo demais, ai, meu Deus –, ouvir de sua voz o cantar de “boa tarde”, tão feliz quanto o sonoro anúncio do carro do pão. Meninos e cachorrinhos corriam à sua volta, homens e mulheres se digladiavam às brechas de portas e janelas, até os artríticos velhinhos se punham em pé. Faltava muito pouco para ser santa ou milagreira.

No entanto, na vizinhança, um mistério passou a rondar a moça.

Marcelo, um rapaz que cresceu no bairro com a fama de “bicho-papão”, jurava ter emplacado um discreto romance com ela. Mas, quem diria, depois disso, mudou completamente. Parou de beber, sair às festas, conversar com amigos, largou o emprego e, por fim, mudou-se de cidade. Porém, antes de partir, confidenciou ao Maneco, garçom do bar predileto: “O homem que tem a Dadivosa não presta mais.”

Confessionário de bar não guarda segredo e, de boca a boca, aquele enigma passou a atiçar a outros militantes do amor livre, que, cada um a seu estilo, se aproximava da moça com o mero intuito de quebrar aquele tabu. Mas, era regra: após todo o farol dos primeiros dias, contados em salão para ouvidos curiosos, os outrora confiantes galanteadores se rendiam ao ostracismo completamente e confirmavam: “Homem que tem a Dadivosa não presta mais! Presta mais, não”.

Genésio, moço bonito e com autoestima de 13 andares, recém-chegado na cidade, quando soube do fuxico, zombou: “Cambada de macho frouxo... Pois eu mostro como se doma uma potrinha. Cadê Dadivosa? Cadê?”

Como cena de filme, justo naquele instante, ela cruzava ritualmente a rua, emprestando à tarde o seu brilho crepuscular. Aqueles homens emudeceram e Genésio, entendendo ser aquela o seu alvo, não negou: “Uma bicha dessas deixa um cabra atoleimado... Me aguarde...”

Alegres, os papudinhos de plantão abriram apostas e pagaram muita cerveja para o valente moço.

Não tardou e ele chegaria à solitária Dadivosa, muito calada e então encantada com o seu palavrório experiente e sentimental. Um pulo para, com jeito, convencê-la a ir a um motelzinho de beira de estrada, porque na cidade “não tinha coragem, não... Imagina!”

Genésio se sentia um Deus, tendo aos seus pés o olhar doce e quase virginal da jovem, até que, ao fechar a porta do quarto, sentiu quando ela puxou agressivamente suas roupas, rasgando-as. Ele, surpreso, a princípio, pedia-lhe calma. Porém, ela, ensandecida, não o atendia: dava-lhe na cara, o arrastava pelo chão, mordia seus dedos e ombros, se jogava por cima, puxava-lhe os cabelos e os pelos, berrava alto e gargalhava o tempo todo, a ponto de o rapaz quase desmaiar de desespero e de dor.

Genésio pedia para parar, “jogava a toalha”, sentia-se mal, agarrou-se à maçaneta da porta, mas ela o trazia de volta todas as vezes até não poder mais...

Passados alguns dias, os amigos de bar, acostumados ao paradeiro daqueles pretendentes à Dadivosa, já dividiam o fruto das apostas, quando Genésio apareceu. A turma comemorou. Contudo, ele nada falou, apenas sorria trêmulo num canto de boca a sacudir a cabeça.

Não confessaria, mas quando Dadivosa o procurou no dia seguinte, não atendeu. Dissessem que não estava, que ninguém sabia dele ou que morreu. À noite, em seu quarto de pensão, deitava na cama o seu corpo ainda todo arroxeado e se esforçava para dormir no travesseiro molhado de suor e lágrimas, forrado de pesadelos intermináveis com aquela cruel e insaciável devoradora de homens.



 

22 comentários:

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    1. Uma dádiva, não é Macário? A dor depois é que são elas... rsrsrs

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  2. Nossa! Pior do que a Dadivosa só a Mãe de Pantana kkkk do filme O homem que desafiou o diabo. Boa demais sua crônica, Raymundo.

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    1. Vixe, e eu perdi esse filme? Menina, vou atrás. rsrs Obrigado, Zélia.

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  3. Se é crônica tem um pé no fato ocorrido também. A Dadivosa parece existir por aí! Dei maior valor!

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    1. Hahaha Se existe, afasta de mim esse cálice, Pai... Abraço, Carlos.

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  4. Menino! Eita Dadivosa perigosa.
    Muito bom, Raymundo Netto

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    1. Sim, algumas delícias da vida têm preço, Malvinier... rsrs Muito obrigado pela leitura.

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  5. " Confessionário de bar" (Que este blog seja discreto!), mas é que estou tão moído quanto Genésio. Dói-me o corpo: assim como Dadivosa, Gargalhosa sacudiu este leitor, de cabo a rabo ( Ah! Uma Dadivosa para socar uma máscara no rabo do Dudu bananinha a cabo de vassoura.), com tal ordem de intensidade que me caiu a máscara do comedimento. Aqui vai _ mantenho apenas o tratamento. Seu Raymundo Netto, que síntese de imagem! Fazer a unidade do reservado com o escancarado, do interior com o exterior, da discrição por abstrato com a indiscrição por concreto-existencial, fazer esse par de disparidades _ " Confessionário de bar "_ confinar-se numa unidade explosivamente contida é uma ďádiva; é uma dádiva do esforço estético-criativo. E que oxímoro curioso vivenciou este leitor: assim como o fogo que arde sem se ver, daquele fulaninho caolho ( Olha o que faz a falta de comedimento de bar neste confessionário de blog!), senti-me moidamente afagado. E Dadivosa? Sem brincar em serviço de dar ( Dar ao chão o céu, à mulher a perfeição, ao homem a passibilidade de humanização do macho, à criança e ao animal o afago do carinho, à janela o debruçar-se deste e daquela.) dá ao dia a dia, em vez da mesmice, o enigma que tanto atiça a curiosidade que se tece em comentário de boca em boca, quanto faz do homem ordinário o homem lampião. A curiosidade vicejou_ seu tecido ganhou nuances; os lampiões, por obra dos assomos dadivosos, se apagaram. Em caso de Dadivosa, nem Genésio deu jeito, contrariando o dito de " só Genésio na causa".

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    1. Genésio não é páreo para dadivosa, mulher de verdade, mais do que Amélia, tão cearense e mais paraibana do que a mulher-macho, sim sinhô... Quem não pode com o pote não segura na rodilha... Obrigado, seu Manduca, que acabe de vez essa pãodemia e a gente possa visitar um confessionário democrático de bar... rsrs

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    1. Eu mesmo, jamais. É muita areia para meu caminhãozinho... rsrs

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  7. Raymundo, acho que você errou o nome dela. Devia ser MANTICOROSA, como toda devoradora de homens é.

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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  9. Dadivosa: o bônus e o ônus. Rsrsrs Parabéns pelo texto!!!

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    1. Grato (sempre) pela leitura e pela divulgação, Dudu. Abração.

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