domingo, 18 de maio de 2025

"À Procura do Café Java", na íntegra, de Raymundo Netto para O POVO


Café Java em 1908


Café Java em 2025


O Café Java, o original, foi fundado em 1886, num canto da praça do Ferreira, quase em frente ao atual prédio da Caixa Econômica, pelo popular Manuel Pereira dos Santos, o “Mané Coco”, marmorista, bombeiro voluntário e um dos personagens da historiografia do cinema no estado.

Com influência francesa, sua estrutura em madeira seguia a estética art noveau, com uso de lambrequins – elementos ornamentais recortados em madeira para adornar os beirais para baixo e para cima –, convergindo na cumeeira – era um telhado de duas águas –, e guardando a parte de cima da sua fachada, de ponta a ponta, uma grade de taliscas também de madeira.

Era nele que se reunia, anualmente, no 1º de abril, a “tropa” responsável pela organização da “maior festa popular da Fortaleza antiga”: o Festival da Potoca, ou, melhor dizendo, da mentira! Também ali, se encontravam os apreciadores da aguardente do Cumbe, trazida pelo Mané Coco de sua terra, o Aracati.

Os seus clientes passavam pelo imenso “Cajueiro da Mentira” e colhiam de seus galhos mais caídos os suculentos cajus para degustar com a boa pinga, enquanto outros bebiam o cafezinho simples, coado na hora, jogavam dominó e/ou esbanjavam seus sonhos, ideias e escritos. Entre eles, Ulisses Bezerra (27) e Sabino Batista (24) sugeriram a um jovem amigo poeta, o irreverente Antônio Sales (24), a criação de um grêmio literário. Ora, o Sales não curtiu. Disse: “Só se fosse uma coisa nova, original e mesmo um tanto escandalosa, que sacudisse o nosso meio e tivesse repercussão lá fora.” Ele não gostava de formalidades, retóricas, discursos e academias. Mas, provocado, criou o título e elaborou o seu “Programa de Instalação”, uma espécie de Estatuto, menos oficial e mais debochado.

Assim, em 30 de maio de 1892, em um imóvel alugado na rua Formosa, 105, fundaram a mais original agremiação artístico-literária do Ceará: a Padaria Espiritual (1892-1898).

Depois do disputado evento, todos se dirigiram para tomar um cafezinho no Café Tristão, do qual nunca ouvi falar.

Na verdade, nas Atas da Padaria Espiritual, não encontramos registro de nenhuma “fornada” (sessão) dos “padeiros” (gremistas) que tenha acontecido no Café Java, embora, ainda em 1892, após terminada uma delas, se dirigiram a ele. Então, não é correto dizer que algumas fornadas foram realizadas por lá.

Também sabemos que, quando da distribuição de seu informativo “O Pão”, os padeiros se abancavam no Java como ponto estratégico de encontro e venda aos seus leitores.

Em 1920, porém, o prefeito mandou derrubar, vítimas do “progresso”, os quatro quiosques existentes nos quatro cantos da praça do Ferreira, verdadeiras vítimas do “progresso”. No entanto, o Mané Coco já havia vendido o Java há mais de duas décadas e abriria um outro Café, o Central, novo ponto de encontro dos últimos padeiros.

Quando houve o anúncio, pela Academia Cearense de Letras, de um “outro Café Java”, também no Centro, mas em local diferente do original, acompanhei.

Estranhei tratar-se de uma “réplica”, o que visivelmente não é, pois é totalmente diverso, não só no material da estrutura, que é de ferro, como em toda a sua arquitetura e ornamentos.

Não sei se realmente esse negócio vai vingar, se será possível, diante do eterno descaso ao Centro, realizar tais programações culturais prometidas pela entidade naquele espaço, que é bastante reduzido, além de ser possivelmente uma onerosa manutenção. Espero que seja possível.


E dói demais assistir, logo ao lado, a igreja mais antiga da cidade, a do Rosário, quase se desmanchando à própria sorte: suja, enegrecida, com portas deterioradas, totalmente pichada e já saqueada. Mais à frente o prédio do Museu do Ceará que, desde 2012, comemorou o “início da reforma”... sem fim! Parece ser demais exigir do Poder Público uma atitude decisiva de proteção, conservação e preservação de nosso centro histórico.



Voltando ao Café Java... eu, da forma como gosto e acredito em livros, acho que seria uma homenagem muito mais relevante e efetiva à Padaria, a publicação e a democratização do acesso à população cearense da prometida coleção “Biblioteca da Padaria Espiritual”, composta de cerca de 14 títulos desses padeiros, pois o que vemos é que muita gente diz comemorar essa agremiação sem nunca sequer ter lido uma dessas obras por eles escritas, simplesmente porque não são acessíveis! Afinal, “Fornecer pão de espírito aos povos em geral” não era o objetivo maior da Padaria?

Então, como diria Antônio Sales em suas sessões: “Está aberta a fornada.”









 

4 comentários:

  1. " ' Está aberta a fornada ' ". Enquanto o " pão " não chega, nos chega esse biscoito agudo em sua " fineza matéria ". No primeiro sábado deste maio, 3, depois de manhã espirituosa no Passeio Público ( com Zélia Sales, Rosa Morena, Rebeca Gadelha e outros ), de almoço na unidade SESC da Escola de Gastronomia, de visita à exposição Zenon no CCBNB, passei no Café Java. Ia dizer fui... Quero dizer fui, mas passei. Passei ao largo do cercadinho. Nenhuma alma à vista. Aliás, vi uma alma que logo se recolheu quando me viu alma do lado de fora do cercadinho. Deve ter se assustado. Obrigado, Dom Netto, por esse biscoito. Melhor comê-lo antes que o " progress(iv)o ( descaso público) o esfarele.

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  2. Biscoito esfarelado é ruim como o diacho... Fortaleza não está preparada para ser uma FORTALEZA.

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  3. Excelente texto , no meio da leitura me dei conta de alguns relatos que conhecia, mesmo assim idealizei como seria, seguindo a narrativa do autor. Em um passeio pelo centro de Fortaleza, estive nesse novo local, super curioso em saber o que seria , e agora mais ainda como será sua história.
    Carlos Henrique J. Alcântara

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