terça-feira, 7 de novembro de 2023

"Vida?", de Raymundo Netto para O POVO


“Esses sãos desígnios de Deus, e eu os aceito.” Essas foram as últimas palavras de minha mãe, deitada em uma maca hospitalar, antes de cerrar os olhos pela última vez, como se fosse apenas cair em sono profundo. Estava ali, toda arrumada, linda, para assistir a um culto do Dia dos Finados, quando o coração emudeceu. A equipe médica tentou trazê-la de volta e ela não quis. Todos nós saberíamos: ela não queria mais. Era o ano de 2016, e um dia propício para partir. Passaram-se sete anos, desde então, e ela continua viva.

Minha avó Alice, mãe de meu pai, ao contrário, turrona e contestadora, escolheu justamente essa data, o dia dos mortos, para nascer! Era bem dela... Próximo de sua morte, não queria ver ninguém. Permitia apenas a filha que residia e tomava conta dela. Fora ela, que ninguém a visse assim, em plena decadência de seu rumo à morte.

O seu filho descansaria quase dois anos após a passagem de minha mãe, no dia 25 de outubro de 2018. Queria curtir um pouco mais dessa vida e dessa terra que tanto amou. Tendo a sua filha caçula como cúmplice, caminhava no calçadão à beira-mar, ia à praia colocar os pés na areia e no mar, tomar sua água de coco, rever amigos – mesmo quando muitas vezes não se lembrava deles. Ela comprava suas roupas, o arrumava, o deixava bem cheiroso, e o levava a locais em que se tocava músicas de seu gosto e, quando possível, arriscava até dançar. Mas, diante do Alzheimer, que o deixava muitas vezes sem condições de apreciar tais coisas com a intensidade que gostava e queria, ele passou a pensar também na sua partida. Por vezes, falou às filhas: não contassem com ele para o aniversário de oitenta anos que planejavam para o ano seguinte, pois ele mesmo não iria. Claro, aquela festa foi cancelada. Mas festa boa de verdade era o meu pai.

Nunca tive medo da morte, mas quando penso nela, me vem a ideia de desperdício, de coisas que não fizemos, nem conseguiremos mais fazer. Chega um dia em que temos que escolher. O que é o mais importante para nós ou o que não gostaríamos, de jeito algum, de deixar de ter feito, escrito ou dito nesta vida. Outros velhos planos de “um dia...”, melhor talvez nem tentar. Passou.

Entretanto, a ideia da má velhice sempre é um incômodo íntimo. A perda crescente da memória, dos movimentos, da disposição, da utilidade e do próprio orgulho é lamentável. Durante anos, assisti a personalidades renomadas e festejadas, pessoas que aprendi a admirar na minha adolescência e juventude, definharem, serem esquecidas, confessarem as suas dores e a sua sensação de incompreensão daquele “outro mundo” que surgira e que nada mais tinha a ver com o “seu mundo”, aquele lugar seguro no qual cresceu, contribuiu e chegou a protagonizar.

Os familiares, pelo apego natural, desejam a eternidade para seus pais, muitas vezes por não entender que alguns estão vivos apenas porque não morreram. Parece óbvio, mas não é. Um dia, essas pessoas perdem as referências de toda uma vida. Os pais, irmãos, amigos, colegas continuamente cumprindo a sua travessia. Os seus programas de TV, ídolos, os autores e compositores preferidos, aqueles bares ou restaurantes onde encontrava seus amigos mais queridos, tudo, tudo desaparecendo com o “seu” mundo. Difícil não se perguntar o que resta para você, quando será a sua vez, o porquê de ainda estar aqui... Um vazio que se torna ainda pior com a coleção de “não possos” que os mais próximos lhe impõem “por amor”: não posso beber, fumar, comer aquele prato predileto bem salgado ou bem doce, sair sozinho... Os “não posso” são tão cruéis quanto os “não consigo”, cada vez mais frequentes, dia a dia, aumentando uma enfadonha lista de inutilidades e frustrações. Sim, a vida é o exercício de perder e a morte não assusta tanto àqueles cuja vida pode não ter mais sentido algum. Temos que aprender a viver, tanto quanto a morrer.





 

3 comentários:

  1. Fiquei pensando, durante a leitura da sua crônica, na partida da minha mãe. Foi silenciosa e triste. Não queria partir e chegou a pedir a Deus para ficar mais um tempo ao nosso lado. Eu tinha vinte oito anos e não sabia o que fazer com aquela dor pungente.

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    1. A perda do ente querido é sempre esmagadora. Ninguém nunca sabe o que fazer, simplesmente, por que não há nada a ser feito. O que nos cabe e ficar em pé, contribuir para essa passagem difícil de desapegos e sentimentos. Transformar a gratidão, o amor, em luz, o que nos auxilia a manter o coração tranquilo e favorece uma travessia solar para aquele(a) que partiu para nascer novamente entre as estrelas.

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  2. Sempre maravilhoso ler suas crônicas!!

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