sexta-feira, 27 de outubro de 2023

"Imita a Vida, a Arte?", de Pedro Salgueiro para O POVO


Em diversas ocasiões constatei que a vida imita a ficção bem mais que seu contrário, não raros são os casos em que um fato recentemente acontecido nos remete a textos há tempos escritos, seja em qualquer gênero: numa conversa na repartição alguém contou do caso amoroso entre colegas em que um casmurro sujeito era apaixonado por outra sapeca ruiva, que por sua vez morria de amores por um coroa meio gordinho e sem graça, que só tinha olhos para a elegante e esquiva magricela do sétimo andar, que nunca correspondeu seus (meus?) olhares pidões e jurava fidelidade a J. Pinto Fernandes, que não estava na história nem era conhecido por ninguém do prédio inteiro em que circulávamos há décadas - o Poeta Carlos Drummond de Andrade acabou sem querer interferindo na conversa.

Várias vezes, em entrevistas sobre literatura, bate-papos em colégio sobre livros, alguém desenterra alguma crônica ou conto cometidos por mim e pergunta sobre sua veracidade, se “aquele que fala da moça que fugiu da cidade teria sido uma tia de um político em tal cidade que sequer andei um dia?”, ou se “aquele crime em que o sujeito voltou depois de décadas à sua terra natal para ser morto não teria relação com a família dos Anzóis Carneiro?” Claro que digo que não, mesmo que alguém acerte na hipótese, pois já sofri horrores ao ter personagens identificados com pessoas “reais”, magoei familiares, amigos e conterrâneos. Por isso nego até a morte: nem sabia de tal história; aproveito para inverter a sentença: a vida imita (ou limita?) a arte!

Mas um pequeno relato meu tem “acontecido” bastante em diversos lugares, o de um personagem traidor, machista, diabólico (segundo os que me contam em meio a meu espanto), que acaba prostrado e “cuidado” pela sua “vítima”: não foram poucos os leitores que me relataram histórias quase idênticas a este reles continho da década de 1990:

Bem antes

Ele nunca fora caseiro; antes passava em casa apenas para trocar de roupa – resmungava um desaforo à esposa enquanto se encharcava de perfume. Os antigos olhos tristes, distantes na direção da porta que ele logo atravessaria para voltar apenas na manhã seguinte. Agora fingia não notar que ela escondia na sala sua melhor roupa, disfarçava no vestido a colônia de alfazema; cuidando resignadamente dos mínimos detalhes: – Querido, se precisar do penico me chame. E ela de sono tão profundo bem no quarto ali de lado: – Se eu não escutar, Lucinha acode, que ela tem o sono mais leve. Na manhã seguinte também fingia não perceber seus olhos inchados, o nervosismo das mãos, a solicitude gratuita, o amor eterno...

– Querido, dormiu bem!? – E afirmava ele com a cabeça, o olhar distante; o lençol escondendo a mancha de urina.

Ultimamente nem a filha mais acordava, com o mesmo sono pesado da mãe – na hora do almoço vislumbrava seus belos olhinhos vermelhos, que não mais o miravam de frente, mas sempre procurando algo para fazer.

Também fingia não notar o jeito cúmplice das duas; no passado: tão distantes – agora altivos, mais de irmãs. Não ligava para o estacionar dos carros na frente da casa, antes bem calma – pois sabia que inevitavelmente elas já estavam dormindo no quarto ao lado: e quão inútil seria chamá-las.









 

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