quarta-feira, 28 de agosto de 2013

"Coisas Engraçadas de Não se Rir XXX: aniversário em motel", Raymundo Netto para O POVO (28.08)


Parece mentira, mas não é. O ambiente frio à lavanda a mostrar-se no rosto de Genésio não lhe era estranho. Eudócia o trazia ali, de olhos vendados, em ritual de surpresa. Agora, entendia tudo. Aquele dia, não que lembrasse, mas ela há muito não o deixava esquecer, marcaria um ano desde o primeiro beijo, também o dia em que entraram pela primeira vez naquele quarto de motel, aquele mesmo quarto, insisto, pois ela não se esquecera de seu número nem de qualquer outra coisa acerca da data. Após um ano, novamente ali, celebrava o seu verdadeiro e bem-jurado amor. Tirava-lhe, então, a venda dos olhos e da memória, buscando compartilhar o passo a passo daquele que fora, ou deveria ser, dia inesquecível para o casal...  Ele, e disso tinha era convicção, não apostava naquele primeiro dia na duração do enlace.
Eudócia curtia o momento, o enchia de afagos e lhe mordia o lábio inferior a ponto até de sangrá-lo. O coitado, de beiço inchado, apenas sorria, assombrado com a determinação da moça que se deu ao trabalho de reservar aquele quarto, de enchê-lo de bolas de gás em forma de coração – beijocando o teto em volta do espelho redondo –, ao som de CD com a trilha sonora de “músicas do casal”, e de uma borbulhante banheira de sais, empoada de pétalas vermelhas de rosas. E, enquanto ela rodopiava pelo quarto a relembrar a longeva noite, de cada ridícula minúcia sua, como as cores e modelos de trajes, o corte de cabelo, as frases casuais, a cerveja roubada do frigobar, uma posição de fim desastrado – “Lembra, paixão, lembra?” –, ele permanecia teso feito um pau de bandeira, disfarçando o silêncio com beijos desmemoriados. Foi quando ela pediu: deitasse que ela já, já voltaria. O homem endoidou: “A mulher estava que era uma fogueira!”, e se despiu prontamente, sem tirar as meias – tinha câimbras com o frio –, e jogou-se ao leito perfumado a julgar-se um cobiçado Apolo, quando abriu-se a porta do banheiro, revelando a moça em uma nova surpresa.
O leitores mais criativos devem estar, nesse momento, imprimindo em sua mente libidinosa a visão da mulher em lingeries ousadas ou em toalha a deslizar suavemente no corpo orvalhado. Os mais apressadinhos devem tê-la como veio ao mundo, um exuberante exemplar feminino... Ora, sinto muito, mas não há tempo nem espaço para debatermos isso, pois nos cabe então, creio, acudir o pobre Genésio cujo queixo escorregou ao chão à visão da mulher de quepe negro à cabeça, roupa de couro, distintivo, cinturão enfeitado em algemas e pistola, a manipular um cassetete na mão. O coitado, ao contrário das pretensões da “policial”, sofreu um acesso descendente imediato e, o que é mais grave, mesmo contendo a custo o sorriso, deixou escapar um pelo canto torto de boca, evidência suficiente para que a jovem enrugasse a testa e o inquirisse:
– Você está rindo, Genésio?
– Claro que não, amor.
– Genésio, você está, rindo, sim!
Uma sombra tensa gratuitamente pousava entre os dois. Ele sabia do coração feminino, lhe percebia as nuanças e não se atreveria a rir e menos expressar-lhe o pensamento secreto. A moça, mesmo desconsertada, continuou sua representação fantasiosa: “Você parece que não sabe brincar, paixão...” Daí, caminhou lento em sua direção, girando o bastão de borracha, colocando a outra mão na cintura, até colocar-lhe o coturno em seu peito magro, quando, “falando grosso”, pediu para ver “os seus documentos”.
Ficou difícil conter a gargalhada. Os olhos dele, tomados de lágrimas, pareciam pedir desculpas antecipadas. Não conseguia pronunciar uma sílaba inteira e mordia os lábios num sorriso amarelo. Eudócia não via motivo para aquilo, não achava graça alguma, e o desânimo se instalava como fratura em seu coração: “Ah, que você não sabe é brincar...”
– Como não sei, amor? Claro que sei... Vai, vai, continua, continua, está bom.
Entretanto, mesmo cheio de boa intenção, o pobre não resistia. Era ela começar a encenação, para ele se tremer todo na inútil tentativa de conter o riso moleque. Ela impacientava e já não lhe pedia os documentos, mas dava-lhe borrachadas generosas: “Toma, seu vagabundo! Toma! Ri agora, ri!”
– Ai, criatura, assim dói... Vai devagar que eu mostro os documentos!
– Seu sem-vergonha, você não tem documento nenhum, não. Cadê, documento? Cadê? Não tô vendo é nada, nadinha. – frustrada, algemou assim o namorado.
Ainda rindo muito, Genésio perguntou pelas chaves. “Que chaves?” “Das algemas, paixão...” “E isso precisa de chaves, é?”
– Mulher, brinca não, eu sofro de claustrofobia. Eu morro! – e agitado, além de sovado, pôs-se a tacar os dentes nas algemas na tentativa de se livrar delas. Diante da visão patética e inesperada de seu homem, Eudócia murchou, destemperando chorosa mais uma borrachuda desnecessária em nádega alheia: “Ai, paixão, você não sabe brincar, mesmo, viu?”
Irado, Genésio, aproveitando a ida da moça ao banheiro à procura de tais chaves, levantou-se, colocou as suas roupas debaixo do braço e saiu correndo ligeiro. Eudócia viu:
– Ei, aonde você está indo, seu desgraçado? Vai me deixar aqui sozinha, é?
Seminu, em cueca e meias, gritava o amante, cheio de ronchas, já no portão do motel:

– Paixão, é que o prisioneiro está em fuga... Não sabe brincar, não, é?

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