terça-feira, 17 de junho de 2025

"Praia de Iracema: uma vitória para quem?", de Raymundo Netto para O POVO

 



Comissão de intelectuais à frente da campanha da "Praia de Iracema"

Comecemos essa boa prosa durante o nosso habitual café da manhã esclarecendo uma dúvida que percebo nebular em alguns: “a Praia de Iracema tem apenas 100 anos?”

Claro que não! Durante toda a existência terrena, sabe-se lá Deus quando minou, diante de tantos acidentes geomorfológicos, esse marzinho em nossa costa desposada do sol. O que está sendo celebrado como centenário em 2025, na verdade, é apenas a mudança da denominação antiga da região, “Praia do Peixe”, para uma nova, “Praia de Iracema”.

E, de fato e por lei, essa mudança aconteceu no dia 7 de maio de 1925.

Atentemos que, até o início da década de 20, não se brigava para morar diante do mar. Ao contrário, quem morasse ali, construía as suas casas de costas para a incômoda e zoadenta seleção de ondas e coleção de areias.

Os pescadores, sim, por uma questão muito lógica e prática, residiam por ali, em casas humildes feitas de taipa ou mesmo em palhoças. Na praia, esses nativos guardavam as suas jangadas e instrumentos de pesca. Naquela região, eram procurados por comerciantes de feira ou mesmo por pregoeiros individuais que compravam o fruto de seu trabalho. Ali mesmo os pescadores, quando preciso, tratavam essa pesca. Isso, naturalmente, liberava um odor não muito agradável para os novos veranistas da elite cafuçu cearense.

Daí, chegou-se a um tempo em que aumentou o número de casas e bangalôs na região litoral. Ter um imóvel de veraneio na praia passou a ser chique e saudável. Foi quando começaram a achar ruim morar na Praia do Peixe.

O Nordeste: vespertino de ação e informação católica, um dos jornais mais conservadores e atrasados do estado, afirmou: “[...] afinal, hão de todos convir que é de fato grotesco apelidar-se, assim tão feiamente, uma das nossas formosas praias, habitadas pelo escol social fortalezense, na época mais agradável do ano. [...] Aquela estação balnear, com os seus confortáveis chalés de estilo moderno, requer, por certo, outra denominação menos repulsiva.”

Não era novidade: rico se incomoda com o pobre, não gosta de tê-lo como vizinho – nem de vê-lo prosperar –, por isso surgiram os bairros de Jacarecanga, Aldeota e agora a Praia de Iracema.

Maria Adília Albuquerque de Moraes, uma das pioneiras feministas do Ceará, intelectual e residente no local, na revista Ceará Ilustrado, de Demócrito Rocha e Tancredo Morais (seu marido), também não gostava daquele nome e passou a chamá-lo em seus textos, por conta própria, de Praia de Iracema, como em uma sutil campanha... e pegou! Outros moradores se reuniram e pressionaram o prefeito da época. Como argumento, a comemoração dos 60 anos de publicação da obra-prima de José de Alencar, uma homenagem e tanto.

Naturalmente, com a chegada desses novos elegantes moradores, os pescadores desapareceriam, aos poucos, do cenário da ora bucólica Praia de Iracema.

Fato: historicamente, não apenas em Fortaleza, as comunidades pobres litorâneas, especialmente as pesqueiras, são ameaçadas por truculentas e covardes remoções, vítimas da especulação imobiliária, mas ainda assim resistem na luta por seus direitos territoriais, pela preservação de seus modos de vida e costumes tradicionais e contra o racismo ambiental.

As ditas “elites”, mancomunadas a governos não alinhados à justiça social, pressionam, em nome de “seu progresso”, a essas comunidades. Oxalá que nós todos estejamos atentos a essas “tenebrosas transações” e tomemos o devido partido, quando for necessário, pois a vida de cada um nos importa!


domingo, 1 de junho de 2025

"O Explorador de Sepulturas", de Raymundo Netto para O POVO


Francisco José Jr., capturando o último exemplar em estoque de 
Fortaleza Belle Époque, de Tião Ponte

Quem andar pela Padaria Romana ou curtir shows de bandas vintage, corre o risco mortal de se encontrar com ele: Francisco José Jr., um homem reservado – a ponto de parecer não estar ali –, de óculos, com extensa calva e usando camisas do Rock’E’rrou... Decerto é o solteirão mais cobiçado... pelas caveiras! Sim, na cidade se comenta a boca miúda que é ele o maior explorador de cemitérios do Ceará, quiçá, da Terra das Palmeiras, e, sem dúvida, da Terra dos Pés Juntos, domínio sombrio que a ele fascina e desafia.

Há anos, o sociólogo, bacharel do Direito e servidor público traz no peito a missão de peregrinar pelos umbrais do Cemitério S. João Batista, a estação que une a vida e a morte, onde os espíritos se despem de sua inútil carcaça humana em busca do significado da existência, da finitude de tudo e do nada... Entre os cadáveres de sua predileção, os da Padaria Espiritual, que não descansam em paz desde de seu chafurdo rotineiro, ainda mais depois da ereção do novo Café Java da Marlene Matos.

Franzé encontra esses despojos mortais, muitas vezes, pobres diabos entregues à própria morte, em jazigos descuidados, depredados e deserdados, órfãos das famílias. Emociona-se e, sensível como é, palestra com todos, e consegue vez ou outra um “mecenas” que encampa a causa e os reforma, como aconteceu com o túmulo de Antônio Sales e de Waldemiro Cavalcanti.

O arqueólogo da necrópole já dessepultou 14 que estavam desaparecidos. Mas não se limita a isso. É um obstinado. Em sua cruzada particular, sai à procura dos familiares, seja em qualquer parte do país e no entorno do Planeta. Destrincha redes sociais, liga, manda cartas e flores, mensagens em garrafas, sinais de fumaça, e-mails, sobras intelectuais. Alguns familiares abordados negam parentesco, correm horrorizados com coroas de alhos e cruzes a ver fantasmas, enquanto outros se rendem a ele, buscam saber mais sobre aquele ilustre antepassado desconhecido e, pior, intelectual, que, até então, deixara como única herança o seu código genético caboclo.

Contudo, Franzé também não tem paz. “O próprio viver é morrer”, lembra-se do Pessoa. É cutucado por forças ocultas, provocado por elas. Os espíritos, como encostos, o utilizam como canal para voltar, serem lembrados neste mundo e até publicar livros, como aconteceu com Sabino Batista.

Um dia, contou-me, encontrou o jazigo de Lopes Filho, membro da Padaria, autor de Phantos, obra simbolista publicada meses antes da obra de Cruz e Souza, marco do Simbolismo brasileiro. Contudo, com a mente nublada de horrores de outro mundo, o pesquisador esqueceu completamente de sua localização. Porém, quando seus olhos anoiteceram, “Ora (direis) ouvir estrelas!”, Lopes Filho apareceu para ele, embriagado, com flor à lapela, à mão uma “branquinha”. Franzé ouviu, paciente, o detalhado e trôpego percurso descrito pelo poeta. Na manhã seguinte, cumpriu a orientação e encontrou a tal sepultura.

Também conta que noutra noite a sua EXposa estava com a coletânea de “O Pão” – informativo da Padaria Espiritual – às mãos, e pôs-se a ler um texto em homenagem ao confrade Xavier de Castro, recentemente morto. Naquele momento, como se proferisse uma liturgia macabra, as juntas dos mosaicos do chão estalaram e, um a um, em torno da leitora, começaram a partir, como se o chão fosse abrir e dele emergisse escorpiões, gafanhotos ou algo mais sobrenatural.

Agora, Francisco José me diz estar às voltas com o Espiritismo... Quer mais? Sim, conhecer os mistérios do além-túmulo, pois do aquém, confessa: “Já estou é enjoado!”