segunda-feira, 17 de julho de 2023

"Procura-se Caio Cid", de Raymundo Netto para O POVO


Fui convidado pela Biblioteca Municipal de Pacatuba a falar a um público de técnicos de bibliotecas daquela região a respeito do escritor pacatubano Carlos Cavalcanti, o “Caio Cid”.

A referida biblioteca, cuja denominação não por acaso é “Carlos Cavalcanti/Caio Cid”, completou 50 anos de existência, inaugurada em 1973, um ano após o falecimento do escritor que também empresta o nome a uma rua da cidade, porém, não duvido que a maior parte da população não tenha a menor ideia de quem seja o sujeito por trás deste nome, assim como hoje são poucos, ali ou em Fortaleza, por exemplo, que sequer tenham lido algo escrito por ele. Aliás, quem o procurar pela internet ou em sebos virtuais é capaz de crer que nunca tenha existido de verdade.

Intriga-me: como um jornalista, poeta, contista e cronista diário dos mais lidos e festejados em sua época pode simplesmente ser varrido da memória geral. Claro, ele é apenas mais um autor cearense e esquecer de todos que cometeram esse delito sacrílego é quase uma regra...

O certo é que Carlos nasceu no sítio “Limão”, na serra da Aratanha, em Pacatuba, a 22 de fevereiro de 1904. Provável filho de agricultor, aos 10 a 12 anos recordava “o ombro calejado do pote [de água] e mão grossa da foice” e que tinha uma única regalia na vida: montar o “Mimoso”, seu carneiro de estimação. Montado neste animal, ia ao Carapió, um vilarejo da região, “calças curtas, descalço”, gastar 1 cruzado com pé de moleque, macaxeira cozida e tapioca.

Ainda na serra de sua infância, diante de “rumorosa solidão, palmeirais alegres e águas claras” acostumou o coração ao culto da natureza, em cujo altar rimou, “ingênuo e deslumbrado”, os seus primeiros versos. Não poderia supor que mais tarde ingressaria na Literatura por meio da poesia, da dor e do sucesso. O poema elegíaco Aleuda (1934), publicado pelo então jornalista aos 30 anos, relatava em detalhes sublimes de dor o padecimento de Aleuda, sua irmã mais nova, falecida em 1931, e de sua mãe Agripina, a quem denominava “minha noiva/fada da serra”.

A obra, prefaciada por Leonardo Mota, foi um sucesso estrondoso, merecendo uma crítica generosa de renomados autores, como Antônio Sales – costumava afirmar que Caio era um poeta a escrever prosa – e Gustavo Barroso, o que lhe garantiu uma tiragem de 3 mil exemplares em segunda edição, tendo uma terceira em 1966.

No ano seguinte, publicaria Aguapés (1935) e Gitirana (1938), ambos de crônicas e contos. Em 1950, de crônicas, teríamos Canapum e, em 1958, Conta-Gotas.

Antônio Martins Filho, eterno reitor e criador da Universidade Federal do Ceará, escreveu sobre Caio Cid em Conta-Gotas:

Enfileirando-se à corrente de escritores brasileiros que procuram dar à crônica um valor destacado entre os gêneros literários – autores como Rachel de Queiroz, Rubem Braga, Fernando Sabino e Henrique Pongetti –, Caio Cid constitui, nos círculos intelectuais do Ceará, um exemplo digno de admiração, pela graça que dá aos seus escritos, pela agudeza das observações, pela maneira pessoal de tratar os assuntos e, sobretudo, assim como assinalamos, pela fidelidade com que se mantém nessa jornada iniciada há tantos anos e que, com certeza, ainda perdurará por muitos anos.

A temática de Caio Cid apresenta uma mescla de imaginação e observação, de poesia e de realidade: saudade, a natureza, o sertão, a rotina, o comportamento humano – há uma desilusão inconsolável com o ser humano – e a morte, esta sempre solene, merecedora de todas as atenções. Também era um humanista. Tendo vivido e acompanhado o sofrimento de sua avó com hanseníase, isolada em sua própria casa – escreveu uma crônica sobre a afetuosa avó, separada de todos em seu quartinho –, foi um dos defensores da construção da Colônia Antônio Justa. 

Embora tenha atuado na Secretaria de Polícia e na Câmara Municipal de Fortaleza, o jornalismo sempre foi o seu terreno: O POVO (onde estreou a coluna “Conta-Gotas”, cuja reunião originaria a obra homônima e derradeira), O Estado, O Nordeste, Gazeta de Notícias e A Rua, entre outros – consta que, em breve período, também trabalhou em jornal do Rio de Janeiro.

Suas crônicas diárias – poucos exemplos temos no Ceará desses cronistas diários, como João Jacques e Airton Monte – promoviam debates, retornavam em forma de cartas à Redação que respondia como lhe convinha, em um estilo franco, honesto e, por vezes, contundentes, a surpreender o próprio autor.

Foi casado com Nilza de Sá Cavalcanti, que chegou a sofrer de “doença mental”, falecendo e deixando-o viúvo com duas filhas: Orlani e Agripina.

Os colegas recomendavam que saísse do luto eterno, representado pela gravata preta, mas ele os respondia: “Quero ter sempre por fora do peito a cor do meu coração.”

Em 1963, receberia o diagnóstico de câncer na laringe, passando por uma cirurgia e perdendo a voz.

Contudo, foi em 21 de agosto de 1972, às 22h, no Hospital São Raimundo, aos 68 anos, que calou-se definitivamente o cronista, sendo sepultado no cemitério de Pacatuba, sua terra natal.

Quem se atreve a devolver ao nosso povo essa voz?

 

***

A seguir, um poema seu publicado no jornal O POVO em 2 de janeiro de 1943:


O Beijo


Eu já vivia a meditar no crime,

no delito sacrílego e sublime

de lhe beijar a fonte peregrina.

Mas hoje – estava escrito – hoje era o dia

Dessa vitória imensa e pequenina.

 

Venha o castigo! Enfim, se eu for punido,

jamais hei de me mostrar-me arrependido

daquilo que me faz alegre e ufano.

Beijar na testa é culto à inteligência.

E esse meu gesto foi, na sua essência,

elevado demais pra ser humano.

 

Eis como aconteceu: a sós, na sala,

“Feche os olhos assim...” Um beijo estala

e o resto não sei como se passou.

Enquanto eu me sentia em doce enleio,

Ela, num misto de rancor e anseio,

Igual à sensitiva se quedou.

 

Se alguém lhe visse os olhos, se alguém visse

a expressão de censura e de meiguice

que em seu divino rosto apareceu!

Era a modesta flor, inda orvalhada,

A tremer de pudor, e revoltada,

Contra o sol matinal que o surpreendeu.


 

8 comentários:

  1. Obrigada, Raymundo Netto, por nos proporcionar esse aprendizado sobre Caio Cid.
    Despertou em mim a vontade de ler as obras dele.
    Fraterno abraço!

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  2. Raymundo você tem mantido muitos artistas vivos ao nosso conhecimento. Nas crônicas de segunda, nas palestras.

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    1. Parece-me minha missão, pelo menos uma delas, e me faz muito feliz trazer luz a esses talentos. Muito obrigado.

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  3. Ótimo. Necessário levarmos para sala de aula. Obrigado

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  4. PRESERVE-SE RAYMUNDO NETTO!

    O que entra por um ouvido e sai pelo outro chama-se olvido. Dessa passagem costuma não restar qualquer marca, nem mesmo a título de cera residual. É que o esquecimento raspa tudo. Raymundo, como lembram os versos de Drummond, rima com mundo. Parece pouco!? Não o é. Os próprios versos de Carlos, aqui ainda o Drummond, em que se ouve dizer o que parece gracejo ( __ gracejo no sentido de, diante de tão vasto mundo o que pode um homem comum senão tirar um sarro da relação entre a existência e os recursos formais possíveis da representação do real poetizável? ), o guardam do alcance do olvido ( este buraco negro da memória ). Não é pouco rimar Raymundo com mundo, não é pequena a rima de mundo com Raymundo, porque nosso Raymundo dá as mãos ao mundo. Por isso, vale a pena. Sim, vale a pena preservar Raymundo Netto! Que não lhe cubra corpo e alma o manto do olvido! O que se deu com muitos; como se dará com outros tantos.

    A sorte dos Carlos, a sorte do mundo, é haver um Raymundo com um pé na poesia e outro no mundo. O mundo de Raymundo Netto é vastíssimo, mas é sobretudo vastissimamente alencarino. Tirar esse mundo, __ em especial, o seu domínio cultural escrito, de debaixo do manto do esquecimento é uma das faces do trabalho desse Netto do pai de Deca Costa. Eu disse faces. Sim, são muitas. Não cabe aqui listá-las; haveria imprecisões. Não sou pesquisador como ele o é. Não tenho, como ele a tem, dos Titãs a sanha para passar além da serra da Aratanha. Sou seu leitor; sou admirador de seu trabalho raymundo neste mundo alencarino. E, antes que eu apresente uma materialidade dessa admiração, digo que assim como há o manto do esquecimento, há o da lembrança. Quando as crônicas quinzenais de segunda no jornal O POVO ( absurdas, ordinárias ou memorialistas ); quando os editais de incentivo à cultura; quando os cursos à distância pela Fundação Demócrito Rocha; quando a edição de livros sob sua curadoria pelas Edições Demócrito Rocha; quando esse tanto de fazeres diversos não possa mais estampar seu sorriso sempre acolhedor, que possa um novo manto sudário estampar sua face síntese: Raymundo Netto de mãos dadas com o mundo, o mundo alencarino!

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  5. (pt.2)
    Quanto à materialidade da minha admiração, ei-la. Em 2019, por volta do mês de setembro, do forro da biblioteca escolar, pendurou-se um nome. Abaixo dele há uma estante: é uma gibiteca. Quando um aluno, em vez de tomar nas mãos um exemplar de HQ, dirige os olhos para o alto, invariavelmente duas são as perguntas que faz: o que é?; quem é? À primeira eu respondo sem delongas: " Um nome __ Raymundo Netto. " À segunda a resposta vem com um convite: " Senta que lá história! " Convoco os Acangapebas; leio uma crônica absurda de segunda; pondero que o amor pode sair barato quando é de graça; puxo um exemplar da coletânea ENEM. Então, chamo sua atenção para o nome que aparece em todo esse material e pergunto: " Merece ou não merece estar lá no alto? " O reconhecimento do merecimento se dá pela exclamação de assombro expressa pelos olhos arregalados e a confirmação desse assentimento, pelo movimento, com o queixo caído, da cabeça para cima e para baixo. É tudo? Não. Eventualmente, algum aluno pede pela explicitação da relação entre o nome e a gibiteca. Então, estendo as mãos e lhe ponho diante dos olhos, ainda arregalados, um fascículo do Curso Básico de Histórias em Quadrinhos, outro do Curso Quadrinhos em Sala de Aula: estratégias, instrumentos e aplicações, o livro História das Histórias em Quadrinhos no Ceará, a revista Antologia HQ. __ " Vês? " Raymundo Netto __ ora organizador, ora coordenador geral e editorialista.

    Raymundo rimar com mundo é muito na poesia do Carlos Drummond de Andrade. Pouco são um novo santo sudário e uma singela biblioteca de escola pública. Pois se uma biblioteca municipal inteira não está capaz de impedir que a memória criativa do Carlos Cavalcanti se perca em uma rua qualquer do esquecimento, o que dizer de duas ações pequenas que apenas fazem a vida, enquanto viva, valer a pena?

    Os dois Carlos estão mortos. O Drummond é lembrado sempre que Raymundo rima com mundo. O Cavalcanti, olvidado, só é lembrado quando Raymundo, para além de rimar, é, por seu esforço, solução quase milagrosa ( lembremos: de água fez-se vinho )para a transformação de seu esquecimento em sua lembrança. Raymundo Netto está vivo! Vivíssimo! É vasto! Vastíssimo! É alencarino! Alencariníssimo! Por isso, pena em sua lida em prol da memória alencarina. Por isso, por sua pena nos convoca a pelejar em prol do alimento nativo que alimenta nossa memória alencarina. Sem Raymundo não saberíamos o valor do que poderíamos perder ao esquecimento. Com Raymundo sabemos que podemos pelo menos esgarçar o manto do esquecimento daquilo que deve permanecer vivo na lembrança. Viva Raymundo Netto! Preserve-se ( , )Raymundo Netto!

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