segunda-feira, 16 de agosto de 2021

"O Velório que não deu Certo", de Raymundo Netto para O POVO


Do caixão, levantou-se num repente. O olhar arregalado desmentia a aparente prostração.

Diante do acontecimento, os amigos de logo correram longe, saltaram janelas, engasgaram-se com biscoitos, quebraram xícaras, cobriram pálidos e adormecidos o chão.

Sentada, gritava coisa com coisa de um não partir agora. Haveria tanto a fazer ainda... E o que seria dos filhos?

O genro lançou, violentamente, o paletó no chão, se negando a crer no retorno da maldita: “Diabo! É mesmo uma estraga-prazeres!"

A filha mais velha deitou um choro cortante. Cria a hora de seu (do dela) merecido descanso. Há tanto cuidava da mãe, de não ter paz: noites maldormidas, horários do remédio, visitas frequentes aos médicos, banhos demorados com esponjas e repletos de reclamações, compressas quentes dias e noites, largos passeios na calçada depois do jantar.... Renúncia da cara vida, que somente aquela morte poderia libertar. Cria. Que engano, nem ela!

Encolerizou o filho a mãe ser desde sempre contra ele. E o que fazer agora com os planos de vender a casa velha? Com o dinheiro, abriria um negócio, arranjaria-se na vida. E agora? O que fazer de seus planos? “Egoísta!”

A empregada velha, malas prontas de partir na soleira da casa, na apatia da convivência, deu-lhes volta ao quartinho conjugado à cozinha: “Vou fazer a sopa de dona Mariinha.”

A pobre defunta, não tanto, ainda tonta, dizia não querer-se ir. “Ainda não!”

Os convidados também protestaram, argumentaram, insistiam: sempre fora tinhosa, danada. Será que só pensava nela? O seu marido, coitado, que Deus o tivesse ou não, já o sabia e foi-se logo, não bestava. E para que se arrumaram tanto? E o jantar?

Já botava uma perninha de fora do caixão... trouxeram-na de volta, ameaçadores: “Tem certeza disso, mamãe? É assim mesmo? Olha...”

Suspirosa, pedia uma chance. Ah, davam não!

Inconformada, mas no rumo do sem jeito, deitou-se lentamente, cruzou os medos das palmas de mãos sobre o peito e morreu de novo, enquanto ouvia, entre últimos ouvidos, os soluços lastimosos de família:

— Ai, minha mãezinha... Que saudade... É, mas descansou!



 


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário