segunda-feira, 19 de julho de 2021

"Distrações", de Pedro Salgueiro para O POVO


Percebi o poder e o mistério de se estar perigosamente distraído num instante banalíssimo de um jogo de futebol, explico: não encontrando lugar nas arquibancadas do Estádio Presidente Vargas, procurei uma fresta entre os que se espremiam ao pé do alambrado junto ao campo; a partida corria solta num empate disputado, com perigo de ambos os lados; eu mal avistava o gramado, levando esbarrões laterais dos nervosos torcedores, então fiquei num misto de distração entre ouvido acompanhando as emissoras de rádio, xingamentos vindos das arquibancadas e força de ombro para não ser jogado pra fora do campo de visão do espetáculo...

Fiquei num estado de sonambulismo de atenções, não sabia em que plano sobrevivia naquela loucura, se no auditivo, no visual ou no meramente corporal, nisso fui perdendo as rédeas da partida e imaginando situações noutros níveis mentais; fechasse os olhos não saberia se estava numa feira, show musical, corrida de cavalos ou...

De repente estiquei o pescoço para a trave que estava à minha esquerda, logo percebi envergonhado que o ataque estava do outro lado, meu lado direito, então balancei a cabeça e me afastei um pouco, envergonhado pelo meu erro... Mas foi somente o tempo de ter que esticar novamente o pescoço e ficar na ponta dos pés, para ver ainda o gol... Desta vez, verdadeiro, um gol, sim!, num rápido contra-ataque o time visitante fez seu tento... lá na trave esquerda... Isso mesmo, aquela mesma trave com a qual me enganara segundos antes.

Na hora as vaias da torcida, os protestos e reclamações dos jogadores, objetos jogados no campo, não me deixaram pensar no assunto, mas chegando a casa, e até hoje, lembro essa pequena premonição proporcionada pela minha máxima distração.

Décadas após, numa daquelas crônicas/poemas de Clarice Lispector (“Por não estarem distraídos”, do livro A Descoberta do mundo: crônicas, de 1984.), encontrei uma possível explicação: “Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos”.

Outros anos depois, encontrei no texto “Cristal com uma rosa dentro”, do Tomo II, do livro Último Round, de Julio Cortázar, esta pérola: “O estado que definimos como distração poderia ser de algum modo uma forma diferente da atenção, sua manifestação simétrica mais profunda situada em outro plano da psique; (...) Não é raro que no indivíduo acostumado com tal tipo de distrações a apresentação sucessiva de vários fenômenos heterogêneos crie instantaneamente uma apreensão de homogeneidade deslumbrante”.

E hoje sei que – parafraseando Leminski – “distraídos enxergaremos” bem mais.




 

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