segunda-feira, 23 de novembro de 2020

"O Espelho", de Raymundo Netto para O POVO


 

Circulou em vermelho o anúncio de jornal.

Viera do sertão esperançando melhoras de vida. À procura de um emprego, tinha passados os dias e, mesmo batendo em diversas portas, só recebia nãos.

Fora acolhido à casa de um irmão e passava bem tantas e quantas vezes, porém, de um momento para outro, ansiou empregar-se sem tardança.

Tudo porque percebera que a cunhada se dava ao entusiasmo de sua presença. Dias-há, a sonsa dera para cruzar seu caminho a camisolas e distraía-se: porta do banheiro aberta quando a feita do banho. Ademais, nunca levava a toalha para o banheiro. Era chegar ao chuveiro e gritar: “Fulano, traz a minha toalha... Eu esqueci!”

Temia que seu irmão percebesse a folga da esposa e viesse lhe tomar satisfações.

Decidiu: tão logo arranjasse um emprego, fosse qual fosse, alugaria um cantinho, um quarto-e-sala qualquer, mas sairia dali antes que o pior se abancasse.

Naquele dia, então, acordara mais disposto, diferente, entusiasmado. Refletia esperanças!

Cedo, encaminhou-se ao endereço do anúncio: um escritório. Cerrou com os dedos o nó meio que penso da gravata, sacudiu a mão nos ombros, segurou firme a pasta do currículo e adentrou.

Sentou-se na recepção entre outros candidatos e esperou a sua vez.

Por motivo ignorado, a secretária logo lhe devotou um olhar sorridente e sedutor, desusando o recato. Encabulado, respondeu com falsa simpatia e polidez.

Chegara a sua vez, finalmente. Ela o pegou pela mão e o encaminhou, com olhos fitos nele, à gerente. Esta, por sua vez, pareceu surpresa, admirada com sua presença e, imediatamente, para seu estranhamento, pôs-se a tratá-lo com gentilezas explícitas.

Ela o ouvia, o ouvia, mas limitava-se a observá-lo em olhar profundo, tão íntimo e contemplativo que o confundia. Foi quando ela moveu os lábios uma única vez e sussurrou suspirosa: Já está contratado! Só!

Sem acreditar, ele perguntou o que iria fazer, qual a sua função, mas ela insistia: não importava, faria qualquer coisa, ou coisa nenhuma; poderia, se assim o quisesse, e se não, que não o fizesse... Estava contratado!

Agradeceu e, quando quis sair, ainda ouviu a insistência da gerente e da secretária: ficasse mais um bocadinho...

Na rua, deu-se o mesmo: as mulheres, de todos os lados, miravam-lhe com sorrisos desvelados, irrefletidos, sem pudores, enternecidos... Esbarravam-se nele, como ao acaso, como quisessem vê-lo mais de perto, tocar-lhe, senti-lo.

Correu para casa, trancou a porta e foi ao banheiro. Torceu para que a cunhada ali não estivesse.

Encostando-se à pia, teve a conclusiva revelação: ante o armário do banheiro, percebeu que, ao invés de sua costumeira face, havia apenas um espelho!



 

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