terça-feira, 27 de outubro de 2020

"Houve uma vez um Anarquismo em Fortaleza", de Tião Ponte para o AlmanaCULTURA


 Tião Ponte ao lado de "Flor Punk"

Foi assim:

No início dos anos 1980, à medida q a ditadura militar caía feito um viaduto, crescia um sôfrego desejo de liberdade no país após tantos anos de mordaça. Sem esperar pela oficialização do fim da ditadura – pois quem sabe faz a hora, não espera acontecer –, a nossa gente sofrida despediu-se da dor, voltou a sorrir e já falava, cantava, encenava e publicava expressões e criações sem de medo de censura, prisão e tortura.

Duas dessas manifestações, no entanto, foram surpreendentes: a volta do anarquismo depois de quase cem anos, e o aparecimento do movimento punk. No meio disso tudo, eu fazia o mestrado em São Paulo e também fiquei tomado por aquele clima contagiante, mas especialmente tocado por esses dois movimentos.

De uma hora pra outra, emergiam núcleos anarquistas em São Paulo e em outros estados; na Bahia o jornal libertário Inimigo do Rei voltava a ser publicado, enquanto livros de história do Brasil resgatavam o movimento anarquista brasileiro durante a Primeira República.

Paralelamente, jovens proletários do ABC paulista e de subúrbios de Sampa criavam o movimento punk no país. Suas roupas, falas, zines e canções explicitavam q punk e anarquismo estavam intrinsecamente ligados.

Cheguei em São Paulo em 82 com cabelo grande, barba, mochila de couro, roupa colorida, casado, comunista e assoviando Chico e Victor Jara. Voltei para Fortaleza em 84 de cabelo curto e espetado, sem barba, com roupas escuras, separado, anarquista e trazendo LPs dos Ramones e dos Ratos do Porão.

Voltei também muito desejante de criar um grupo anarquista de estudos & ação q contasse também com a participação dos punks da cidade, caso existissem. Existiam: tinham bandas, faziam zines, sofriam repressão policial e participaram de bom grado do nosso “Coletivo Anarquista de Fortaleza”. Mais: embasbacaram e sacudiram os esqueletos da multidão que compareceu às duas festas que realizamos, uma na quadra do CEU e outra no Pirata Bar (que, à época, estava revolucionando a noite da cidade). Tais festas foram notícias no O POVO e serviram para lançarmos nosso zine O Mutante Visionário e vender exemplares do Inimigo do Rei, já q havíamos nos associados ao grupo baiano que o editava.





Havia dois líderes naturais entre os punks, o Dedé Podre e a Flor Punk. Esta era vocalista, letrista e baixista da Resistência Desarmada, primeira banda de rock de Fortaleza formada só por mulheres.

Creio que aprendemos mais com os punks do q eles conosco. Eles tinham a vivência anarco-punk cotidiana e de rua q nós outros integrantes, de classe média, não tínhamos.

Solidariedade, companheirismo, debates, performances e fruições marcaram a existência do nosso Coletivo e da nossa convivência com os punks nos três anos q durou essa curta, para mim inesquecível, viagem.


 

PS: Quase 40 anos depois, os LPs dos Ramones e dos Ratos do Porão continuam convivendo numa boa com os dos Chico e do Victor Jara na minha discoteca. 

 


Um comentário:

  1. Like. Conheço a cena punk de São Paulo e Brasília por conta de documentários e por entrevistas de seus sobreviventes. Muito bom saber da cena de Fortaleza.

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