sábado, 30 de novembro de 2019

Paul Gerhard: o "Doutor HomemTerra"




Hoje o dia amanheceu chorando. Embora o céu ainda azule, os passarinhos gorjeiam um lamento: a partida de Paul Gerhard Wirtzbiki de Almeida (1955-2019), o "Doutor HomemTerra", sem sombra de dúvida, uma das pessoas que mais me impactaram em minha vida, um personagem típico de romances de cavalaria, uma presença ímpar, um amigo, um irmão... uma saudade sem cura.
Com ele pude conhecer um outro lado do mundo que a ingenuidade e a inocência desejada nos impedem de conhecer e com Paul pude conhecê-lo da melhor forma, a mais divertida e até debochada. De outra forma, certamente eu não suportaria.
Também com ele fui provocado a pensar grande, a desafiar-me, a desconhecer impossibilidades, a me divertir com as seriedades inúteis, a rir-me das mentiras do mundo (ele conhecia tantas), a entender que a vida pode e deve ser divertida naquilo que nos propomos a fazer, ensinamentos que levei por onde passei e que trago comigo, sempre rodopiando em minha cabeça e me exigindo a não conformar-me nem espalhar ilusões desnecessárias.
Mas ontem, dia 29 de novembro, poucos dias depois de seu aniversário, durante a comemoração de aniversariantes do mês de novembro de seu mundo-parque, aquele que lhe era maior, o coração, o traiu e calou o seu sorriso para sempre.
Lembrei-me desse texto a seguir, escrito para ele durante a passagem de seu aniversário. O li, o vi nele, e percebi a sua imortalidade em mim e, certamente, naqueles que conviveram com ele, que privaram de seus afetos, amores, cuidados e presença.
Vida longa ao doutor Paul, que sempre quando via alguma coisa minha publicada em jornais, me escrevia - sempre em poucas linhas - "Netim" ou "Doutor Neto", me orgulho de ser seu amigo.
Eu muito mais, Paul Gerhard. Vá, mas no melhor abraço de Deus. 


Paul Gerhard: o "Doutor HomemTerra"

Há cerca de 15 anos* conheci Paul Gerhard Wirtzbiki, o "doutor Paul", ou "o doutô", como o chama a maior parte das pessoas daqui do "sítio", forma pela qual ele se refere a esse espaço que conhecemos hoje como Parque Ambiental e Zoológico (o “P.A.Z.) Ecopoint.
Na época, no mesmo local que se prestava a conservadouro conservacionista, se via o início do planejamento e a construção de sonhos da realização de um zoológico, o primeiro a ser regulamentado pelo IBAMA em Fortaleza, que recebesse alunos das escolas particulares e públicas do estado. Um centro de difusão de educação ambiental, da pesquisa científica, de prática para alunos dos cursos de biologia, veterinária, zootecnia, entre outros.
Nem preciso dizer do meu encanto à primeira vez que pisei nesse pedacinho de chão, coisa que nesses anos todos, mesmo em períodos em que estive mais distante, via e ouvia das pessoas a mesma reação: "o quanto era maravilhoso esse espaço", "o que era isso?" ou "as pessoas tem que vir aqui, têm que conhecer esse lugar".
Logo que aqui cheguei, fui apresentado ao Paul e ele próprio foi quem me mostrou o lugar. Para mim, na época, acreditava ele ser apenas mais um empresário, talvez alguém com muito dinheiro no bolso e querendo tentar algo diferente, o que o Ecopoint sempre foi e ainda é. Mas já numa primeira volta no sítio, volta esta que passei a repetir com todos que aqui chegavam para conhecê-lo, percebi não se tratar apenas de uma boa ideia e de questão de investimento. Fui guiado por aquele homem de recepção acolhedora, olhar agudo e sorriso irônico, muitas vezes debochado, que andava ligeiro sobre as pedras demarcadas por ele mesmo, como uma trilha, e que me indicava os recintos, acarinhava a Suzi, a sussuarana, brincava como o Tucanaçu (um tucano), enquanto fazia uma espécie de revista nos espaços, no estado dos animais e das plantas, e, assim, de quando em quando gritava entre os vazios das árvores centenárias em sonora voz: "Cosme! Riba! Jorjado! Zééé! Socorro! Pintor! Madeira!" Percebi que era daquele jeitão que ele dirigia aquele novo mundo. Sim, logo, logo descobri que aquele era o SEU MUNDO particular.
Prova disso, é que anos depois, chegando ao parque, final de expediente, me chamou para andar com ele. Sempre muito ansioso, estava com umas ideias... Quando parou ao lado do salão, olhou para cima e disse que ali era um bom lugar para se ter uma árvore (não lembro bem se era um abricó-de-macaco ou um ipê). Sabia ele que havia um pé já crescido na área de Fazendinha (área do Ecopoint simulando o aspecto rural). Assim, saiu gritando por um bocado de gente, mexeu meio mundo para conseguir um carro para transportar aquela árvore que seria transplantada e o dia seguinte já amanheceu com uma árvore nova ao lado do salão. Era como se brincasse de ser Deus, o que só seria possível nesse seu mundo, claro.
Voltando ao nosso primeiro encontro, sentamos juntos e ele me contou a história que nada tinha a ver com emas, capivaras, micos e onças, mas sim a sua história, que sempre começara na Alemanha, pelo vovô Franz, e depois aqui, no sítio Gluck-Auf, a casa onde viveu sua infância, as aventuras pelo centro de Fortaleza, prestando serviços ao pai, as histórias da mãe, a “dona Érika”, que é como ele, com um carinho respeitoso, chamava aquela senhora de sorriso largo e olhar azul, a sua relação com os irmãos, os aprendizados da caserna (na época que serviu), as coisas da política e uma extensa apresentação da família, que logo eu iria conhecer: Maria Amélia, Gabriela e Vitor. De tanto me falar dos filhos, ainda adolescentes naquele tempo, da forma afestuosa como se tratavam, quando surgiu a ideia de criar uma espécie de cartilha de educação ambiental em quadrinhos com o tema do Ecopoint, batizei alguns dos personagens de Gabi e Vitor. Obviamente, entre os personagens, o mais "errado" tinha que ser o Paulinho (uma homenagem ao crianção que era o Paul).
Pois, sim, o Paul, que no primeiro encontro estava bem trajado, nos demais, aparecia apenas de calção, sempre descalço, suando com uma raquete na mão (no Ecopoint tem uma quadra de tênis muito movimentada). Rebolava um par de meiões por ali e sentava num canto de porta, numa mesinha infantil, brincando com os calangos que apareciam para saudá-lo, a comer coxa de frango e farofa de cuscuz, embebidos pelo Red Johhny Walker, e passava a contar mais histórias, a contar piadas, tirar sarro com seus companheiros de partida, Robério e Gildervan, entre outros. Gostava de falar sobre ideias, mas não atentava muito a processos, esquivava-se da chatice deles, de suas explicações e elucubrações, embora, independentemente da hora e lugar, puxava um pedaço de papel e com uma caneta passava a desenvolver projetos de carpintaria e alvenaria, a desenhar croquis, a fazer cálculos, a chamar um por um de seus funcionários, gritando seus nomes pela janela. As conversas eram hilárias. Ele, com o óculos na ponta do nariz,  fazia cobranças e pedia relatórios. Alguém dizia: "Doutor, quebraram!" No que ele logo interrogava: "Quem quebraram?" E por aí vai, a conversa se prolongava até que chegassem todos, que se encostavam por ali para ouvir os carões do "doutô".
E nessa hora, também chegava mais gente: policiais sorridentes, fornecedores, vendedores de peças antigas (algumas arrebentadas, que ele dava um jeito de restaurar para ver funcionando), e até os beneficiados da “Fundação Paul Gerhard de Assistência Social”, sucursal do coração daquele grandalhão que, generoso, sempre inventava uma desculpa para dar a mão àqueles que ele achava não ter muitas chances nem oportunidades.
Foi assim que cheguei a trabalhar fixo por um período de cerca de um ano por aqui, conhecendo-lhe um pouco mais de perto. Vendo-o no meio das festas da dona Maria Amélia, quando ele se tornava "invisível", apenas se preocupando com o bem-estar dos convidados e a satisfação de todos, catando copos ou palitos de picolé deixados no meio do caminho, retirando aquele capim que estava excessivo na beira do passeio, coletando instrumentos de trabalho esquecidos, ou chamando o tratador para tirar aquele animal destroçado no recinto e outras aventuras que só quem trabalha em zoológicos sabe que acontece.
Sempre admirei a sua humildade e a simplicidade de ser, além da sensibilidade, senso estético e zelo. Poderia ficar se exibindo como dono, proprietário daquela “Disneylândia” ecológica e naturalista, mas talvez pensasse: "Aqui já tem muitos pavões!", e ficava ali, na sua sala, jogando paciência, cutucando a coleção "Tesouros da Juventude" da infância sempre saudosa, assistindo à TV, a postos para qualquer coisa, até mesmo para pular no tanque da piscina quando percebeu que uma garota ali havia caído e que todos ao redor estavam atônitos e imóveis.
Lembro-me com certa graça, de uma festa em que ele conseguiu atravessar no meio dos convidados e de crianças, sentados e se divertindo, um carrinho de mão que trazia, por baixo de uma lona, uma onça pintada adormecida. Ah, se eles desconfiassem... E muitas são as suas histórias.
Paul Gerhard é assim. Dá jeito em tudo. O “doutor HomemTerra”, que é como o intitulei um dia, tornou-se um amigo. Honra-me e alegra-me dizer isso. Creio que quem o conhece de perto, sente o mesmo. Preocupo-me com sua saúde, com seu bem-estar, não apenas pela amizade, mas por reconhecer-lhe todos esses predicados e valores que o fazem um ser humano especial. A vida não é fácil. Nem sempre as coisas se dão como queremos. Às vezes temos que abrir mão de nossos sonhos, mas é bom saber que alguns, e ainda próximos, guardam na alma essa paixão, essa ternura e sensibilidade. Paul tem isso tudo e ainda traz muita coragem, mesmo quando põe a mão na cabeça, fecha os olhos e diz: "Ai, meu Deus do Céu!"
Que essa data se repita por muitos e muitos anos, e que possamos, nós todos que aqui estamos, ainda compartilhar de suas aventuras, de suas histórias, de sua força, de sua companhia e de seu mundo, ouvindo suas gostosas e ruidosas gargalhadas, torcendo pelo seu sucesso e felicidade.
Brilhe sempre, doutor Paul Gerhard.

(*) Texto escrito e apresentado ao Paul durante as festividades de seu aniversário no Parque Ecopoint, em 2016.

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