sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

"Vida Linda de Morrer!", de Raymundo Netto para O POVO



A dona Morte estava triste. Tirante uns diligentes suicidas – muitos deles querem se matar, mas não querem morrer –, era mesmo a indesejada das gentes.
Há zilhanos, desde que o mundo é mundo vasto mundo, transitava ela por aqui, sempre à espera do instante solene de sua existência. Sim, existência, porque vida mesmo a Morte não tinha. Seria quase uma condição sine qua non para ela, declinar de qualquer estertor de vidas, não se apegar a nenhuma delas, ser no mundo a grande cultora de cascas vazias. Assim, pensava-se, fora ela criada e experimentada na mais suprema incompreensão, sem possibilidade sequer de curtir seus frios seguidores e sem nunca se permitir prazer nenhum. Afinal, o prazer, assim como a alegria e o amor, dizem, é condição de vida.
Entretanto, no nada absoluto do mundo, mantinha ela um segredo: morrera de amores uma única vez na vida: pelo poeta Dante, que conseguiu convencê-la, numa promessa de Vita Nova, que o amor seria o prelúdio da morte, estratagema depois revelado para aproximar-se da sua amada Beatrice. Daí, sepultou de vez todas as afeições e o seu coração traído com Dante foi-se. E a foice com Dante!
É raro que as pessoas dediquem seu tempo – de vida, porque o tempo da morte é o silêncio – em aprender a morrer. Já dizia Sêneca, o moço desafeto de Messalina, “quem não souber morrer bem, terá vivido mal”.
Aliás, a dona Vida, sua irmã, ao contrário, vivia em regalos, quase uma parteira, celebrada e lembrada em festejos, desejada e aplaudida por todos em sopros de velinhas e de línguas de sogra, estampada em camisetas de feira e panos de prato. Sucesso de público e de crítica – mais desta, pois criticar a vida alheia é quase um exercício, sabido que a língua é um músculo.
A pobre dona Morte, não negava, colhia invejas da irmã. Com os pés calejados de tanto acompanhar despojos, sem qualidade de vida ou autoestima, vista com temor e desconfiança – há quem diga que é ilusão, uma espécie de “black-fraude” –, a Morte naquele dia rebelou-se. Plantou o pé e bradou ao infinito: “Nem morta!” E nós sabemos que juramento de morte sempre foi coisa que deu certo – ou muito errado – por aqui.
O fato é que durante esse tempo, o sofrimento do mundo aumentou. Ora, a imortalidade é um inferno! Foi quando ela percebeu que, mesmo contra a sua vontade, sua presença inda seria sentida por todos. Pessoas sofriam a perda de amores, de amigos, de afetos, das horas e de outros bem-quereres na distração eterna de todos os dias. Sim, ela seria o que há de mais presente e definitivo na rotina mundana. Pôs-se a sentir na carne a dor mortal dos corações feridos a suspirar diante de porta-retratos, de reflexos em espelhos, do convite para o café que não chegou, na audição daquela música da juventude, no ecoar das gargalhadas daqueles filhos, agora adultos, que não moram mais ali. Perder é a morte em prestações. A Vida, chama breve, uma sala de estar das tintas pálidas da Morte, servindo-lhe aos poucos – às vezes, aos montes.
O que fica é a dor. E a dor que não passa nunca se chama saudade, e como sussurrou em seu ouvido o cronista, “é na morte onde ela mora”! Foi quando a Morte despertou e se viu, em essência, tão igual a todos os mortais, no vagar aprendiz do cortejo a caminho da solidão.

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