Creuza do Carmo Rocha, em 1928
A Primeira Dama de O POVO
A Primeira Dama de O POVO
Noite quente e estrelante de 11 de fevereiro de 1974. Creuza
do Carmo Rocha chegava em casa, animada, falante e feliz. Vinha da festa de
aniversário da neta Lúcia Maria Dummar
Asly. Sentou-se à penteadeira. Deitou, por um instante, o olhar na imagem
setuagenária no espelho, e tocava com a ponta dos dedos o cabelo da nuca quando
seus braços mornos penderam. Albanisa, sentindo o silêncio do cômodo,
correu-lhe a tomar o peso da mão: “Mamãe?”
Em 28 de outubro de 1897,
nascia. Não conhecera o pai, Joaquim, morto antes. A mãe, Isabel Cristina, de
vida humilde, costureira, morava em casa alugada com os seis filhos. Quando
Maria do Carmo, Maroca, a mais velha, se casou, levou toda a família com ela,
inclusive a Creuza, caçula, espirituosa, alegre e brincalhona, que gostava de
ler e de conversar.
No rebentar do século XX,
em Fortaleza, o Passeio Público era o ponto de encontro dos rapazes e moças,
que lá se iam, em seus melhores trajes para impressionar e chamar atenção. Num
desses dias, um jovem e magro telegrafista baiano, nove anos mais velho que Creuza,
recém-chegado a cidade, não tirava os olhos da moça graciosa, a esbeltar o
vestido, provavelmente feito pela mãe, tendo, à cabeça, um chapéu de abas
largas a trazer, em seu cimo, uma pena extensa e alva que parecia acenar para
ele. Então, a poesia de sua alma versou em coragem e, ali mesmo, entre as
esfinges que enigmavam seu destinovo, tomou-a para si. Em apenas seis meses,
noivaram, apoiados por Maroca, a irmã-guardiã.
Foi na Igreja de Nossa
Senhora do Carmo, em 9 de fevereiro de 1915, que Demócrito e Creuza se uniram
de vez. Em janeiro, entretanto, Demócrito havia assumido uma agência dos
Correios em Iguatu, vindo a cidade apenas para se casar e levar a esposa, então
com 18 anos. Era ano da grande seca. Não tardariam por lá, pois, quando ela engravidou,
o marido, preocupado com as condições de parto, voltou a Fortaleza, ainda em
agosto, passando a morar na casa de Maroca. E, em 5 de janeiro de 1916, nasceu
Albaniza. Demócrito, com a segunda gravidez de Creuza, alugou uma casa na Barão
do Rio Branco, e, com eles, foi a sogra, que auxiliaria com a nova netinha, a
Lúcia, nascida na surpresa de sete meses, em 6 de maio de 1917.
A vida não era fácil, nem
poderia ser, a princípio, pelo reduzido salário de escriturário pagador dos
Correios, que era o que tinham. Mudaram de residência várias vezes e por
pretextos diferentes. Aliás, um das queixas eternas de Creuza a Demócrito foi de
ele nunca ter adquirido a sua casa própria.
Por outro lado, Demócrito
era zeloso, afetuoso e trabalhador. Foi convidado para escrever para O Ceará, e, por iniciativa própria, lançaria
a Ceará Ilustrado, revista
completamente original para os moldes da época. Por meio do sucesso de sua
“Nota do Dia” e de sua revista, Demócrito logo, logo, passaria a agregar em
torno de si, tudo e todos que faziam a literatura, a comunicação, a política e
o jornalismo de sua época.
Em 1927, quando Demócrito
sofreu violenta agressão por parte de oficiais da polícia, um “recado” do então
governador, Creuza o recebeu em casa, ensanguentado e com diversas escoriações,
carregado por braços de populares. O jornalista tornava-se uma celebridade. Seu
nome já era entendido, naquele tempo de poucos suportes de comunicação, como a
voz dos oprimidos. Ganhara vulto e leitores, rapidamente, como poucos em seu
tempo. Isso, de certa forma, fazia com que estivesse sempre na rua, militando, envolvido
em polêmicas, escrevendo para jornais, em reuniões sociais, nos coretos das praças,
além de frequentar o círculo boêmio e intelectual. Creuza sabia bem: não adiantaria
cobrar a sua presença constante em casa; Demócrito era do mundo! Daí saber mais
de seu esposo pelos outros. Era comum ser parada nas ruas para ouvir elogios ao
“grande homem” que era o seu marido. Orgulhava-se, é verdade, mas temia. As
pessoas não imaginavam o aperto que ela trazia no peito toda vez que ele
colocava o chapéu na cabeça, e “conferia” às costas a pistola 32 ou seu punhal,
ao atravessar a soleira de casa. Com as pequenas Izinha e Lúcia, chegava a sair
de casa a procurá-lo, quando demorava, o encontrando a jantar despreocupado no
restaurante da praça do Ferreira. Por vezes, iam apenas as meninas, e lá ficavam
com o pai, ouvindo conversas de política, até voltarem juntos para casa. Comum
também era assistir a homens armados
cruzando-lhe a calçada e colocando os olhos pelas portas e frinchas das janelas.
Nas manhãs, também encontrava as paredes riscadas por peixeiras e as janelas e
portas marcadas por punhais, em constante ameaça, coincidentemente sempre
quando Demócrito chegava animado, falando de nova contenda ou quando se
orgulhava da poeira levantada por um texto seu. Ela lia o que ele escrevia e o ouvia.
Na empolgação do marido, a fala firme e descontraída... Era como se não fosse
com ele, mas era, e muito!
Quando
surgiu O POVO, sua ausência tornou-se ainda mais sentida. Trabalhava no
jornal e no consultório dentário, para “segurar as pontas”. Creuza decidiu,
então, já que não podia estar nesse mundo ao lado de Demócrito, o tempo inteiro
— embora fosse costumeiro vê-la com as filhas, atentas e batendo palmas, na
primeira fila de seus discursos —, trazer “esse mundo” para dentro de casa:
passou a convidar amigos e esposas para tertúlias literárias e, assim, trocavam
visitas. Demócrito tinha necessidade de gente, de trocar ideias, e ela também.
Quando
da eleição de Demócrito como deputado federal, em 1935, indo ele trabalhar no
Rio de Janeiro, Creuza, durante bom tempo se viu sozinha, mesmo recebendo
regulares e acalentadoras cartas do marido. Tempo difícil em que contou com a
ajuda das filhas e de Paulo Sarasate. Demócrito retornou doente, e ela esteve
ao seu lado até o derradeiro suspiro, em 1943.
Creuza,
a primeira mulher a possuir título eleitoral no Ceará, adorava jogar “buraco”
com as amigas, motivo para se encontrarem, tomarem refrescos, água de coco, comer
doces e bolinhos. Nas refeições, era obrigada a tomar remédio para o fígado,
dose esta que era compartilhada por quem estivesse à mesa com ela, precisando
ou não. Gostava de dormir de rede. Mesmo depois da morte de Demócrito, manteve
a habitual promoção de tertúlias e festas. Amigos, políticos e demais
personalidades do país marcavam encontro, em cadeiras de balanço de sua varanda,
para ouvi-la, pedir votos ou conselhos. Ela, muito franca, dizia o que pensava,
mesmo quando não fosse tão doce quanto as iguarias servidas por Hermínia, a sua
cozinheira e auxiliar de casa — que falecida, foi sepultada ao lado de Creuza.
Com
a morte do genro, assumiu a presidência de O POVO, em 1970, enquanto
Albanisa, a superintendência. Na época, J.C. Alencar Araripe, José Raymundo
Costa e o jovem Demócrito Rocha Dummar assumiam a diretoria editorial,
administrativa e comercial, respectivamente.
O
Edifício Demócrito Rocha, atual sede
do seu jornal, foi inaugurado em 7 de janeiro de 1974, cerca de um mês antes do
falecimento de a grande “Dama d’O POVO”.
Amigo uma vez fiz homenagem aos 80 anos do jornal O Povo e, minha matéria foi lida no plenário do Senado Federal. A direção do jornal não teve o zelo de pelo menos dizer a este jornalista um muito obrigado. São essas nuances que nos levam ao desistímulo em homenagear órgãos cearenses. Fica com Deus e parabéns pela bela matéria.
ResponderExcluirObrigado, amigo, pelo comentário. E parabéns pela matéria lida no Senado. Qual foi o título dela, por favor?
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