Deoclécio se casara com
Consuelo inda muito jovem. Tinham filhos e contavam mais de 45 anos em
comum, o que sempre parecia impressioná-lo: “Quem diria...”
Na cozinha, por horas, detinha a atenção naquela mulher a varrer, passar
o pano, catar feijão e cortar cebolas. Ansiava pela hora em que reencontraria
nela a mocinha de olhar brilhante que vira pela primeira vez na pracinha a
semear gargalhada inconfundível, a propor ingênuo futuro de amores e a beijá-lo
demorosamente como se o mundo fosse acabar ali, naquele instante. Ao contrário,
então, ela sorria quase nunca, pouco se expressava, chegava ao ponto de parecer
não ter nenhum querer ou esperança na vida. Se o ouvia? Não sabia. O rosto,
geralmente sisudo, era sulcado de rugas. O corpo, frio e flácido. Olhava para
ela e via a sua mãe. Pensava: “Como tocar em minha mãe?”
Consuelo, também com o tempo, recusava apetites. Quando de muita
insistência, se dava a qualquer coisa, muito pouca e tímida, quase ausente,
numa friúra de má atuação. O desejo trocado por frustração e impotência. Uma
desgraça seguida de boa noite.
A fome e a longa jornada de rejeição abriu portas para um inesperado
caso. Deoclécio sabia: “A amante não era metade da Consuelo de sua lembrança,
mas o fazia homem de novo, achamado em paixão e ardor.”
Naturalmente, os arranjos se avolumaram e foi difícil manter a
discrição: a filha o encontrara ao telefone público diante do bar. A outra, no
carro parado em quarteirão escuro. O filho ouviu da vizinha que “parecia” ter
visto seu pai com outro alguém num calçadão de praia. As filhas nunca, mas o
filho o abordou. Ambos envergonhados, sem jeito, se encaravam: “Você é muito
novo para entender.” “Eu não quero entender nada. E a minha mãe, como fica?”
Olhavam para Consuelo sentada na sala e alheia a tudo. Apenas duas coisas lhe
pareciam fazer algum sentido: a missa e a novela.
Deoclécio continuou vendo a amante, entretanto, o conflito o corroía.
Não permitia que ela falasse de Consuelo, uma santa! Nem de longe criticar
aqueles filhos. Ela silenciava, mas se impacientava diante daquela imprevista
insegurança.
Um dia, a notícia: Consuelo morreu! “Foi o câncer”. Em meio ao
sofrimento e à culpa, ainda ouviu da caçula: “Pai, você conseguiu. Agora está
livre para sem-vergonhice!” Os outros filhos silenciaram. Nada mais importava
agora.
Deoclécio quedou-se em cacos. Chorava a soluçar, feito menino.
Esforçava-se, mas não conseguia se lembrar da última vez que conversaram nem
sobre o quê. Morria com Consuelo a sua melhor porção.
Deitaram os anos. O homem envelhecera tudo o que podia na vida. A amante
desaparecera há tempo. Porém, um dia, no bar, a encontrou agarrada a outro,
chamando pelo mesmo apelido de cama que outrora lhe pertencera. Fitava-a e
pensava como pôde: “Tão sem graça aquela...”
Voltou para casa escura e vazia. Com a ponta dos dedos acompanhava o
desfile de porta-retratos a relembrá-lo da irreparabilidade de uma vida, o
desencontro, o desamor, a insuportável saudade daquilo que foram e tiveram.
Daí, um fulminante silêncio tomou conta de seu peito, ao ouvir uma
alegre gargalhada lhe chegar daquela cozinha:
“Consuelo? É você, meu amor?”
Publicado originalmente em Quando o
Amor é de Graça! (EDD, 2019). Se tiver interesse em adquirir, pode fazê-lo
pelo WhatsApp (85) 99183.8515
Excelente! Com já se sabe, Raymundo Netto sempre nos alcança a alma e surpreende com suas histórias.
ResponderExcluirVocê te. Um dom divino!! Amo te muito.
ResponderExcluiradoro suas histórias. esse livro, repleto delas, de uma qualidade ímpar. aplausos
ResponderExcluirMuito show. Blz.
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