segunda-feira, 7 de novembro de 2022

"Ninguém Vive sem Amor", de Raymundo Netto para O POVO


Apolônio Eugênio de Mascarenhas Lobo, desde a primeva infância vulgarmente conhecido pela alcunha “Ninguém”, teria algumas qualidades que o distinguiam da maioria dos mortais: era boêmio, ateu, comunista e poeta. Havia outra, para ser sincero com o leitor ou a leitora, que distraídos deixaram cair os olhos nessas apenas sugeridas linhas: Ninguém nunca amara alguém! Sim, se dizia poeta e não vivera sequer a mais mísera história de amor. Porém, como a vida não é nada perfeita e dada a sua condição de reiterada improvisadora, deu-se que um dia Ninguém sentiu um aperto inédito no peito, que, de tão original, pensou ele ser o seu fim... mas, ao contrário, foi o começo!

Ao entrar numa loja de variedades, encontrou-a, tímida, na seção feminina. Belíssima, a mais linda mulher em que já pusera os olhos. Como encantado, aproximou-se dela, sussurrou algo em seu ouvido, e ela parece ter gostado, pois dali sairiam os dois agarradinhos direto para a casa daquele que, até então, ignorava esse estado de graça.

Durante semanas, Ninguém seria o homem mais feliz do mundo, descoberto como num sonho, a percorrer a pé os versos tortos sem eira nem beira dos desvairados amantes.

Quando nos passeios ao final da tarde, Ninguém percebia os olhares zombeteiros e curiosos do populacho para o casal. Ele, claro, sempre subestimado, supunha logo que estranhavam: “O que essa mulher tão linda viu nessa coisinha?” Neste momento, ele olhava para a companheira e, ela, altiva, não dava a mínima para eles. As lentes do coração violam a miopia do olhar humano. Que os maledicentes se lixassem, se roessem de invejas, fossem para o inferno: eles se amavam!

Às noites, vendo-a na cama, deslumbrante e completamente nua, pronta para incendiá-lo, chegava a se envergonhar por merecer tanto. Deitava com cuidado ao seu lado e diante das estrelas cadentes que regem amores assim, tomava-lhe os seios, as nádegas, beijava cada poro de seu corpo, chupava os dedos de seus pés. Daí flagrados pelo sol a espiar cedinho na janela, percebiam a noite não ser suficiente para caber tanta paixão.

Contudo, com o passar do tempo, inexplicavelmente, como injusta é a vida de quem ama, percebia a gélida presença de seu silêncio, uma inesperada e incômoda apatia. Teria se entediado com ele? Estava arrependida? Por vezes, enquanto ele inventava assuntos, contando causos, falando de poetas e poemas ou de seu modesto – e quase insignificante – trabalho de editor, a assistia sentada no sofá da sala, olhando distante pela janela, como a divisar uma despedida anunciada.

Enfim, não aguentando mais a tortura da indiferença e da desatenção, conversou com ela em prantos de morte. Podia partir! Levasse com ela o seu coração, o seu mundo, nada mais importava. Estava ferido, melhor não vê-la nunca mais. Ela, talvez surpresa com o inesperado desfecho, nada falou. E assim se deu o fim de mais uma, entre tantas, histórias de eterno amor.

Meses depois, Ninguém cruzava a calçada da mesma loja em que encontrara a sua amada. Difícil olhar para o prédio e não se recordar sofrido desse dia. Contudo, sobressaltou-se ao ver, expostos na vitrina da loja, ela ao lado de um outro homem. Estava resplandecente como sempre, agora vestida de branco, com véu e grinalda. O sorriso era o mesmo que ela o oferecia todas as manhãs, só que então ela o dividia com aquele outro, um novo amor, de cravo na lapela, também inerte, segurando levemente os dedos da mão enluvada. Parecia feliz, insuportavelmente feliz, como nunca, e isso bastava para ele, que aprendera da forma mais cruel: o verdadeiro amor pede renúncia e desesperança, mesmo que doa... e muito. Foi-se. E até hoje, maldito pelo amor, sangrando de saudades e ciúmes, Ninguém é triste.




 

7 comentários:

  1. Como sempre os seus escritos são ótimos.

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  2. um ninguém cheio de qualidades, boa Raymundo, você é exemplo

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  3. O que me parece é que mesmo triste. Só ao final, Ninguém virou Alguém. Acho que assim eu concluiria(se me permite a ousadia) : Alguém é triste.

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  4. Corrigindo: o que me parece é que só ao final, Ninguém virou Alguém. Assim eu concluiria (se me permite a ousadia): Alguém é triste.

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