domingo, 2 de outubro de 2022

"Laika: caroço de Sputnik", de Raymundo Netto para O POVO


Há mais de 60 anos, na onda de Guerra Fria, o satélite soviético Sputnik I marcaria o início da corrida espacial, deixando a potência estadunidense impotente diante da incalculada e atroz humilhação. Não bastasse, um mês depois, novamente a U.R.S.S. promoveria o cazaque lançamento ao espaço de um novo satélite, o Sputnik II. A novidade maior seria que a bordo deste estaria acomodado o primeiro ser vivo a orbitar a Terra. Para o orgulho feminino, e por um restritivo detalhe anatômico, o ser não seria “ele”, mas “ela”, a cadela Laika, de apenas 3 anos. Ou seja, ela não falava, porém, já latia.

Na época, dada como morta em circunstâncias que iriam além das divisas atmosféricas e, portanto, da jurisprudência mundial, o destino da heroína e mártir socialista se tornou motivo de diversas conjecturas e teorias. Eu, no entanto, não acredito em nenhuma delas e explico o porquê.

Há alguns anos, fotografando as ruínas ferruginosas do mercado da carne da Aerolândia – hoje completamente restaurado –, assisti a uma cena insólita: parecia um cão descendo de paraquedas. Seria possível? Seguindo meu instinto de jornalista diplomado em Ministério, corri até a base aérea para saber o que era aquilo.

No descampado, a vi sobre as patas, mangas arregaçadas, a recolher as longas linhas de náilon e o velame. Apresentou-se: era ela mesma, a Laika, em pessoa... ou melhor, em cachorro. Incrível. E todos pensando que ela, há tempos, teria virado “hot dog”!

Latindo fluentemente em português, não demorou a demonstrar a garganta seca e a perguntar, numa sinceridade quase gentílica, “onde poderia encontrar vodka”. Ofereci-me a levá-la ao Benfica. Não bebo. Então, quando me pedem por álcool, ou levo para a farmácia ou ao Benfica.

No caminho, por meio de fórmulas complicadas, que fingi entender para não parecer mais burro, a pequena vira-lata – insistia na tese de que pertencia a uma linhagem pouco convencional de husky siberiano, mas... – me explicava: devido ao tempo relativo, ela, que, teoricamente, deveria ter mais de 60 anos, gozava de uma jovialidade impressionante. Falou também existir uma Sociedade Sideral Protetora de Animais e que foram alguns de seus integrantes que a mantiveram viva quando a equipe russa a largou de mão... Ouvindo tudo aquilo, eu que desconfiava, agora tinha a absoluta certeza: “as vodcas do Benfica não prestam!”

Contou-me mais. Com tempo de sobra, além de encher o bucho com gelatina russa, leu de trás para frente obras de  Фёдор Миха́йлович Достое́вский e de Анто́н Па́влович Че́хов, “gênios”, sendo agora também uma contista: “Aliás, a nossa literatura é a melhor do mundo”. Pior é que é: Gogol, Tólstoi, Pushkin, Maiakoviski...       

Assim, escreveu também diversos livros. Alguns teriam feito bruto sucesso em Fobos, uma das luas de Marte, que, historicamente, vivia em conflito com o planeta vermelho.

Nostálgica, a cãosmonauta falava de seu exílio, da saudade das noites de lua em Moscou, da boêmia em São Petersburgo, até chegar às alucinações da experiência da proximidade com a morte e do seu encontro com Deus, num arrependimento legítimo de um Raskólnikov: Estive, praticamente, nos braços Dele, mais do que qualquer outro ser... mais até do que o Papa!”

Diante de outras divagações e da tediosa mansidão canina, que percebia ir mais longe do que se foi, arrisquei a obviedade: “Desculpe-me, Kaka, mas a pergunta é inevitável: a Terra é mesmo azul?”

Sorrindo com graça e humildade, lambeu o dorso de minha mão e perguntou: “Ora, Raymundo, você esquece que os cães enxergam em preto e branco?”

 

Publicado em Quando o Amor é de Graça! (EDD, 2019)






 

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