Existia
uma estrada, um caminho do ir e vir. No meio do caminho havia uma praça [o autor refere-se à praça Visconde de Pelotas, a atual praça Clóvis Beviláqua], uma
praça com fonte e caminhos que se cruzavam na sombra das árvores. Eu era
menino, menino sozinho que conversava sozinho, brincava sozinho, sorria e
chorava sozinho. Eu e minhas divagações. Costumava sentar naqueles bancos
verdes, longos bancos de praça onde o distraído e cansado transeunte se
acomodava na impessoalidade daquele pequeno bosque, tão acolhedor. Bancos de
praças são impessoais e amigos a um só tempo. Eles sabem muito sobre nós. Ali,
todos os dias, todas as tardes, sentavam-se crianças, adolescentes e velhos que
simplesmente sentavam por sentar. Sentavam pelo simples prazer de contemplar
caminhos e folhas. Folhas que o vento soprava e brincava feito criança. Tudo
era calmo. Naqueles longos bancos eu percebia o valor do silêncio. Passarinhos
inquietos em cada galho, mendigos ao pé dessa ou daquela árvore. Assim era essa
praça onde todos se aninhavam. Enquanto isso amantes, sorrateiramente, tomavam
a praça ao anoitecer. Aquela praça era meu lugar preferido quando, aos sábados,
regressava do Sesc para minha casa. Eu e minhas aflições, alegrias e
questionamentos de criança. “Por que o céu é azul?” Havia na praça uma fonte em
forma de círculo que jorrava água e tristeza. Nem sei quantas vezes sentei ali,
naqueles bancos, naquelas sombras, naquela paz que me fazia tão bem. Sei que a
praça escutava meus pensamentos. Falava comigo através do vento que soprava
macio, com o suave barulho da fonte e das folhas. Depois de algum tempo ali
sentado eu levantava do banco e seguia, a contragosto, o caminho em direção à
casa onde morei por muitos anos. Hoje já não há mais caminhos, não há sombras
nem o barulho de árvores. Hoje não se vê, naquele logradouro, passarinhos ao
entardecer. Ficaram apenas as recordações. O tempo passou com muita pressa e eu
nem percebi. Não há mais a casa, não há mais o lar daqueles dias. Sei que
continuo procurando respostas às minhas indagações. Talvez tenham ficado no
banco daquela praça, lá no passado, ao lado da fonte, debaixo de uma árvore
esperando o entardecer. Se antes ela, a praça, era um conforto para minha alma,
por tudo o que ali vivi, hoje nada mais é do que um sepulcro de concreto,
calor, barulho e indiferença. A praça se foi com as águas do reservatório,
águas que regaram minha infância, minha primeira solidão.
terça-feira, 12 de outubro de 2021
"Minha Primeira Solidão", de Severiano de Barros
Praça Visconde de Pelotas, atual praça Clóvis Beviláqua, no Centro (Arquivo Nirez)
Crônica muito sensível, para ser lida como se a ouvisse de uma voz lenta, baixa e calma.
ResponderExcluirUma delicada melancolia se esparge na lembrança da antiga, bela e arborizada praça da Bandeira, que foi criminosamente desertificada pela construção de uma imensa caixa d'água subterrânea no início dos anos 70.
Que fonte seria essa testemunhada por Severiano? Seria a atual fonte que hoje está na Praça Murilo Borges, a praça do banco do nordeste? hoje da Justiça Federal? Teríamos algum registro iconográfico que se alinhe com o testemunho aqui deixado? É um dado novo que deve ser muito considerado. Ao que se sabe a fonte da Praça da Lagoinha passou pelo Benfica até chegar novamente ao Centro. A crônica, como bem disse Tião, recheada de uma melancolia poética, nos é sussurrada ao pé do ouvido como um murmúrio de saudade.
ResponderExcluirA fonte, a que me refiro no texto, se encontra em frente ao prédio do BNB, hoje ocupado pela Justiça Federal. Não sei se há algum registro iconográfico para a praça que frequentei da forma como a descrevi, com árvores e corredores entre elas. Já vi imagens antigas (muito raras), mas sem as árvores. Para mim, que era criança, aquilo era muito grande, muito extenso. Tudo é sempre muito grande para as crianças dado o tamanho de uma criança. Ao nos tornarmos adultos é que percebemos o tamanho definitivo dos móveis, das ruas e também das praças. Para mim ela era o que escrevi, o que descrevi. Grande, arborizada e muito calma.
ExcluirDeixo meu agradecimento ao amigo/irmão Sebastião Rogério e a UnKnown pela sensibilidade ao compreender o texto, essa pequena crônica, pequena e muito pessoal. Agradeço também a Raymundo Netto pela atenção e gentileza em publicá-la. Muito obrigado.
ResponderExcluirNosso blogue, Severiano, como disse, é nosso. Pode se abancar. O prazer é meu.
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