domingo, 24 de outubro de 2021

"O Sobrado da Abolição - Parte II", de Raymundo Netto para O POVO

 


Daguerreótipo de Juvenal Galeno na serra da Aratanha (1860)
(Acervo Casa de Juvenal Galeno | foto: Raymundo Netto)

Em Prelúdios Poéticos (1856), especialmente no poema “Lembranças da Partida”, o quadro pintado da serra da Aratanha, “mãe” onde aos seus pés deita indolente a vila da Pacatuba, é idílico. Juvenal Galeno (1836-1931), ainda na Guanabara, às vésperas de tomar o vapor para o Ceará, se desmancha em saudades quase insuportáveis de seu torrão, de sua família e amigos. Romântico obstinado, para ele, no Rio não havia rival que se comparasse à amada terra e a suas delícias, laranjais, luares, cascatas, canaviais, trovadores, cafezais...



"Sobrado da baronesa", casa dos pais de Juvenal Galeno na serra da Aratanha
(foto: Raymundo Netto)


Entretanto, é na leitura de “Dia de Feira”, em Cenas Populares (1871), que ele, não em poesia, mas em prosa, descreve a história e o cenário de sua vila: “Era ao alvorecer de um domingo, na vila da Pacatuba... Agrícola e florescente, a Pacatuba é uma linda dona, que sabe distribuir as horas de seu domingo com as preces, os seus arranjos caseiros, e as teteias de seus enfeites. [...] E certa de uma boa feira, a Pacatuba varre as suas lojas, banha-se em suas vertentes, alisa os longos cabelos, e veste-se do melhor modo para receber os fregueses, os obreiros de seu engrandecimento.”

Da pequena e serrana terra, onde plantou a maior parte de sua vida, Galeno não sabia, mas revolucionava a literatura de seu estado, sendo, aos 13 anos, um dos criadores do Sempreviva, pioneiro do jornalismo puramente literário no Ceará. Adolescente e estudante do Liceu, em Fortaleza, fundaria o Mocidade Cearense, pioneiro da imprensa estudantil. Em breve passagem pelo Rio de Janeiro, trouxe Prelúdios Poéticos, obra marco do Romantismo cearense. 



Detalhe da folha de rosto de Prelúdios Poéticos (1856), obra de estreia de Galeno
(Acervo Biblioteca Pública do Ceará | foto: Raymundo Netto)


Passou a colaborar com jornais de Pernambuco e no Ceará, além de na famosa Revista Popular, depois no Jornal das Famílias  de onde Machado de Assis, que também colaborava, extrairia alguns dos seus Contos Fluminenses , ambos editados pelo livreiro Louis Garnier (RJ). Escreveu Quem com Ferro Fere, com Ferro será Ferido (1859), primeira peça escrita e encenada no Ceará. 


Detalhe do manuscrito original da peça "Quem com Ferro Fere, com Ferro será Ferido" (1859) (Acervo Biblioteca Pública do Ceará | foto: Raymundo Netto)


Foi um dos intelectuais que recebeu e acompanhou a Comissão Científica Exploradora que, em Pacatuba, hospedou-se no sobrado do capitão Henrique Gonçalves da Justa – principalmente o botânico Freire Alemão e a maioria do grupo, pois Gonçalves Dias muitas vezes preferia instalar-se no sítio Boa Vista, da família de Galeno, para participar de “jogos de prenda”. 



Sopeira do conjunto de jantar de mãe de Galeno. É provável que tenha servido aos membros da Comissão Científica Exploradora (1859)
(Acervo Casa de Juvenal Galeno | foto: Raymundo Netto)


Por conta de um almoço com a Comissão, Galeno faltaria ao desfile da Guarda Nacional, que integrava, sendo preso, e, por vingança a seu comandante João Antônio Machado, lançou, às pressas, A Machadada: poema fantástico (1860), a primeira obra literária impressa no estado. Por influência literária do amigo Gonçalves Dias, escreveu A Porangaba: lenda americana (1861). Naqueles tempos, foi um dos primeiros poetas abolicionistas do Brasil. Publicou Lendas e Canções Populares (1865), que, apesar do estilo romântico, tem forte componente e crítica social. Em campanha contra a palmatória, a sua Canções da Escola (1871) inaugurou aqui a literatura infantojuvenil. Naquele mesmo ano, nos trouxe Cenas Populares, o primeiro livro de contos cearense, nos apresentando também o nosso primeiro autor ambientalista. Em 1872, como pioneiro das autopublicações, de sua Tipografia do Comércio imprimiria Lira Cearense. Foi um dos fundadores do Clube Literário (1886), do Instituto do Ceará (1887) e do Centro Literário (1894), e padeiro-mor honorário da Padaria Espiritual (1895). Em 1891, publicou Folhetins de Silvanus (poesia e prosa), uma seleção de textos que escreveu sob pseudônimo no jornal A Constituição



Capa da edição original de Folhetins de Silvanus (1891)
(Acervo Raymundo Netto | foto: Raymundo Netto)


Nesse período, passou a ter seus versos musicados por Alberto Nepomuceno – e depois por Camargo Guarnieri – e executados nacional e internacionalmente.

Morreria Galeno, em 7 de março de 1931, aos 95 anos incompletos, deixando um legado inestimável, uma história que, ainda e aos poucos, está sendo contada e revelada, história esta que cruzou os trilhos e veredas de Pacatuba e da Aratanha.

(Continua daqui a 15 dias)



Objetos de uso pessoal de Juvenal Galeno, últimos anos

(Acervo Casa de Juvenal Galeno | foto: Raymundo Netto)





18 comentários:

  1. Excelente texto... obrigada Raymundo por dividir histórias belas como esta do nosso cearense tão ilustre.

    ResponderExcluir
  2. Faço como a Unknown, agradeço-lhe, Raymundo, por nos fazer conhecer melhor o Juvenal Galeno. Crônica oportuníssima essa, pois nos revela como ele, além de excelente escritor, foi pioneiro em muitas ações que perfazem a história da literatura cearense.
    A propósito: temos em Fortaleza um bairro, uma praça, uma estátua homenageando-o? Se existe(m), nunca soube.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Temos um rua (era o início da Bezerra de Menezes, ainda em vida, depois passou a ser aquela rua que passa ao lado da Faculdade de Letras da UFC) e uma escola. Sua herma ficava na praça Visconde de Pelotas, mas numa reforma desapareceu. A Casa de Juvenal Galeno fez uma campanha para descobrir seu paradeiro e ela apareceu e, desde então, se encontra no interior da Casa de Juvenal Galeno.

      Excluir
  3. Juvenal Galeno era um homem à frente de seu tempo. Parabéns pelo rico texto.

    ResponderExcluir
  4. Excelente. Obrigada Raymundo Netto por dividir conosco tantas histórias. Sou de Redenção Ce, compartilhei parte I e agora também parte II, no meu Facebook, numa página que criei a algum tempo "Coisas de Lá". A história nos permite fazer parte da cena, já imaginei o casarão pronto para receber visitantes. Seus textos contribuem muito para quem está estudando, para quem vai fazer provas do Enem também é para quem gosta de saber mais sobre nosso povo, quem ama História. Parabéns!

    ResponderExcluir
  5. Verdadeira aula de história,Obrigada pelo apredizando.

    ResponderExcluir
  6. Um texto que nos faz voltar no tempo, conhecer nossa história e literatura cearense. Grata pela partilha!!! 👏🏼👏🏼👏🏼

    ResponderExcluir
  7. Ainda espero ver um dia a Casa da Baronesa viva em um imenso museu com um restaurante pra receber os visitantes e apreciar a vista do mirante lá em cima da serra. Já imaginou que sonho uma trilha ecológica e literária até lá em cima! Que rica experiência e pro turismo e cultura da região! Pacatuba tem um potencial imenso!

    ResponderExcluir
  8. A escrita de Raymundo Netto é, a um só tempo, informativa e literária, é um duplo presente para nós leitores.

    ResponderExcluir
  9. Que maravilha de texto! Curioso que a Pacatuba foi o nosso destino de passeio rápido no fim de semana. Passando por lá, a vontade era construir uma casinha e morar com as crianças. Acho que ia ter assunto e inspiração pra escrever o resto da vida.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Kelly, simpática essa Pacatuba, né? Independentemente desses conhecimentos, ela é, e espero que continue sendo, acolhedora, tranquila...

      Excluir