quinta-feira, 28 de outubro de 2021

"Passeio de infância, imitando Clarice Lispector", de Sonha Malaquias

Salina do Diogo
(foto: Elian Machado)

Meu pai achava que filhas, erámos seis, para sair de casa teriam que estar acompanhadas dele ou da minha mãe. Papai era um homem autoritário, com princípios rígidos de honestidade e “machistas”. Mamãe, mulher determinada, muito amável e carinhosa, orientava as filhas a obedecerem e ela aparentemente obedecia.

Imitando Clarice Lispector vou contar de um passeio da minha infância. Foi nos idos dos anos cinquenta e sessenta do século passado, mas é como se fosse ontem. Meu pai combinava com minha mãe o passeio. E naquele dia iríamos conhecer a Salina do Diogo, no Sítio Antônio Diogo, Salina Barra do Cocó, que não era bem na praia e, sim, no Mangue do Rio Cocó. A estrada carroçável acolhia com uma poeira vermelha os poucos carros que ali passavam. O caminhão parava e a meninada, pois a rua toda era convidada, aos gritos de alegria, pulava da carroceria em busca da felicidade, ouvindo as vozes dos adultos dizendo: cuidado, cuidado.

Dirigíamos para a Ponte do Rio Cocó, onde teríamos a melhor visão e ali também a grade de madeira viria a nos proteger. O sol pousava contrário à nossa vista. Ficávamos ali por umas duas horas, apreciando, correndo e arengando. Papai e mamãe cansavam logo. De volta para casa era só fome e enfado.

Hoje, lembro aqui a imagem daquele mar de sal, tudo branquinho, ligando-se com o azul do céu no limite do horizonte, essas cores divinas elevavam a alma. O verde do mangue emoldurava a paisagem em cores de realidade. Distante de nossa visão, alguns homens se moviam fazendo não sei o quê, mas com certeza naquele sol nosso de cada dia não seria leve o trabalho.

Impossível falar desse momento da minha vida sem lágrimas a banharem meu rosto. Não só pela lembrança de uma infância feliz, e pensar que muitas crianças ontem e hoje não a tiveram, mas porque nesse lugar tomou assento o concreto de construção de um empreendimento comercial. É ali nas terras ocupadas pelo Shopping Iguatemi (“Da Salina do Diogo ao shopping de sua vida”).

Na época, por volta dos anos setenta, houve manifestação contra a construção, mas sem resultado. Por sinal, há pouco tempo houve um grande movimento em defesa da natureza e da vida, com manifestações conflituosas para impedir mais uma vez agressão ao meio ambiente. De novo não tivemos bons resultados e o viaduto exuberante se exibe aos olhos dos que ali passam e até dele se utilizam.

“De noite eu ia dormir”, voltando a história do passeio, com aquela linda imagem de brancas nuvens de sal cobrindo todo o mangue até que adormecia e sonhava com toda aquela folia do passeio. Acordava no outro dia com o pensamento viajando, aguardando o novo passeio.

“A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade?”

Sempre. Sempre. Nas lembranças da infância e nas vivências do dia a dia descobrindo a beleza e o amor na visão madura e sábia do presente.




 

domingo, 24 de outubro de 2021

"O Sobrado da Abolição - Parte II", de Raymundo Netto para O POVO

 


Daguerreótipo de Juvenal Galeno na serra da Aratanha (1860)
(Acervo Casa de Juvenal Galeno | foto: Raymundo Netto)

Em Prelúdios Poéticos (1856), especialmente no poema “Lembranças da Partida”, o quadro pintado da serra da Aratanha, “mãe” onde aos seus pés deita indolente a vila da Pacatuba, é idílico. Juvenal Galeno (1836-1931), ainda na Guanabara, às vésperas de tomar o vapor para o Ceará, se desmancha em saudades quase insuportáveis de seu torrão, de sua família e amigos. Romântico obstinado, para ele, no Rio não havia rival que se comparasse à amada terra e a suas delícias, laranjais, luares, cascatas, canaviais, trovadores, cafezais...



"Sobrado da baronesa", casa dos pais de Juvenal Galeno na serra da Aratanha
(foto: Raymundo Netto)


Entretanto, é na leitura de “Dia de Feira”, em Cenas Populares (1871), que ele, não em poesia, mas em prosa, descreve a história e o cenário de sua vila: “Era ao alvorecer de um domingo, na vila da Pacatuba... Agrícola e florescente, a Pacatuba é uma linda dona, que sabe distribuir as horas de seu domingo com as preces, os seus arranjos caseiros, e as teteias de seus enfeites. [...] E certa de uma boa feira, a Pacatuba varre as suas lojas, banha-se em suas vertentes, alisa os longos cabelos, e veste-se do melhor modo para receber os fregueses, os obreiros de seu engrandecimento.”

Da pequena e serrana terra, onde plantou a maior parte de sua vida, Galeno não sabia, mas revolucionava a literatura de seu estado, sendo, aos 13 anos, um dos criadores do Sempreviva, pioneiro do jornalismo puramente literário no Ceará. Adolescente e estudante do Liceu, em Fortaleza, fundaria o Mocidade Cearense, pioneiro da imprensa estudantil. Em breve passagem pelo Rio de Janeiro, trouxe Prelúdios Poéticos, obra marco do Romantismo cearense. 



Detalhe da folha de rosto de Prelúdios Poéticos (1856), obra de estreia de Galeno
(Acervo Biblioteca Pública do Ceará | foto: Raymundo Netto)


Passou a colaborar com jornais de Pernambuco e no Ceará, além de na famosa Revista Popular, depois no Jornal das Famílias  de onde Machado de Assis, que também colaborava, extrairia alguns dos seus Contos Fluminenses , ambos editados pelo livreiro Louis Garnier (RJ). Escreveu Quem com Ferro Fere, com Ferro será Ferido (1859), primeira peça escrita e encenada no Ceará. 


Detalhe do manuscrito original da peça "Quem com Ferro Fere, com Ferro será Ferido" (1859) (Acervo Biblioteca Pública do Ceará | foto: Raymundo Netto)


Foi um dos intelectuais que recebeu e acompanhou a Comissão Científica Exploradora que, em Pacatuba, hospedou-se no sobrado do capitão Henrique Gonçalves da Justa – principalmente o botânico Freire Alemão e a maioria do grupo, pois Gonçalves Dias muitas vezes preferia instalar-se no sítio Boa Vista, da família de Galeno, para participar de “jogos de prenda”. 



Sopeira do conjunto de jantar de mãe de Galeno. É provável que tenha servido aos membros da Comissão Científica Exploradora (1859)
(Acervo Casa de Juvenal Galeno | foto: Raymundo Netto)


Por conta de um almoço com a Comissão, Galeno faltaria ao desfile da Guarda Nacional, que integrava, sendo preso, e, por vingança a seu comandante João Antônio Machado, lançou, às pressas, A Machadada: poema fantástico (1860), a primeira obra literária impressa no estado. Por influência literária do amigo Gonçalves Dias, escreveu A Porangaba: lenda americana (1861). Naqueles tempos, foi um dos primeiros poetas abolicionistas do Brasil. Publicou Lendas e Canções Populares (1865), que, apesar do estilo romântico, tem forte componente e crítica social. Em campanha contra a palmatória, a sua Canções da Escola (1871) inaugurou aqui a literatura infantojuvenil. Naquele mesmo ano, nos trouxe Cenas Populares, o primeiro livro de contos cearense, nos apresentando também o nosso primeiro autor ambientalista. Em 1872, como pioneiro das autopublicações, de sua Tipografia do Comércio imprimiria Lira Cearense. Foi um dos fundadores do Clube Literário (1886), do Instituto do Ceará (1887) e do Centro Literário (1894), e padeiro-mor honorário da Padaria Espiritual (1895). Em 1891, publicou Folhetins de Silvanus (poesia e prosa), uma seleção de textos que escreveu sob pseudônimo no jornal A Constituição



Capa da edição original de Folhetins de Silvanus (1891)
(Acervo Raymundo Netto | foto: Raymundo Netto)


Nesse período, passou a ter seus versos musicados por Alberto Nepomuceno – e depois por Camargo Guarnieri – e executados nacional e internacionalmente.

Morreria Galeno, em 7 de março de 1931, aos 95 anos incompletos, deixando um legado inestimável, uma história que, ainda e aos poucos, está sendo contada e revelada, história esta que cruzou os trilhos e veredas de Pacatuba e da Aratanha.

(Continua daqui a 15 dias)



Objetos de uso pessoal de Juvenal Galeno, últimos anos

(Acervo Casa de Juvenal Galeno | foto: Raymundo Netto)





terça-feira, 12 de outubro de 2021

"Minha Primeira Solidão", de Severiano de Barros


 Praça Visconde de Pelotas, atual praça Clóvis Beviláqua, no Centro (Arquivo Nirez)

Existia uma estrada, um caminho do ir e vir. No meio do caminho havia uma praça [o autor refere-se à praça Visconde de Pelotas, a atual praça Clóvis Beviláqua], uma praça com fonte e caminhos que se cruzavam na sombra das árvores. Eu era menino, menino sozinho que conversava sozinho, brincava sozinho, sorria e chorava sozinho. Eu e minhas divagações. Costumava sentar naqueles bancos verdes, longos bancos de praça onde o distraído e cansado transeunte se acomodava na impessoalidade daquele pequeno bosque, tão acolhedor. Bancos de praças são impessoais e amigos a um só tempo. Eles sabem muito sobre nós. Ali, todos os dias, todas as tardes, sentavam-se crianças, adolescentes e velhos que simplesmente sentavam por sentar. Sentavam pelo simples prazer de contemplar caminhos e folhas. Folhas que o vento soprava e brincava feito criança. Tudo era calmo. Naqueles longos bancos eu percebia o valor do silêncio. Passarinhos inquietos em cada galho, mendigos ao pé dessa ou daquela árvore. Assim era essa praça onde todos se aninhavam. Enquanto isso amantes, sorrateiramente, tomavam a praça ao anoitecer. Aquela praça era meu lugar preferido quando, aos sábados, regressava do Sesc para minha casa. Eu e minhas aflições, alegrias e questionamentos de criança. “Por que o céu é azul?” Havia na praça uma fonte em forma de círculo que jorrava água e tristeza. Nem sei quantas vezes sentei ali, naqueles bancos, naquelas sombras, naquela paz que me fazia tão bem. Sei que a praça escutava meus pensamentos. Falava comigo através do vento que soprava macio, com o suave barulho da fonte e das folhas. Depois de algum tempo ali sentado eu levantava do banco e seguia, a contragosto, o caminho em direção à casa onde morei por muitos anos. Hoje já não há mais caminhos, não há sombras nem o barulho de árvores. Hoje não se vê, naquele logradouro, passarinhos ao entardecer. Ficaram apenas as recordações. O tempo passou com muita pressa e eu nem percebi. Não há mais a casa, não há mais o lar daqueles dias. Sei que continuo procurando respostas às minhas indagações. Talvez tenham ficado no banco daquela praça, lá no passado, ao lado da fonte, debaixo de uma árvore esperando o entardecer. Se antes ela, a praça, era um conforto para minha alma, por tudo o que ali vivi, hoje nada mais é do que um sepulcro de concreto, calor, barulho e indiferença. A praça se foi com as águas do reservatório, águas que regaram minha infância, minha primeira solidão.



domingo, 10 de outubro de 2021

"O Sobrado da Abolição - Parte I", de Raymundo Netto para O POVO


A Igreja Matriz de Pacatuba (foto: Raymundo Netto)

Pacatuba é um sedutor município cearense localizado a apenas 30 km da capital, florescendo aos pés da majestosa e lírica Serra da Aratanha. Embora muitas vezes seu nome seja relacionado ao trágico acidente aéreo que vitimou 137 passageiros (o voo VASP 168, em 1982), a pacata cidade traz, principalmente na sua história e geografia, características significativas e legados curiosos, embora muitas vezes nem tão lembrados, mas que deveriam ser, não fosse o nosso povo tão distraído e deslumbrado pelas brilhantes desimportâncias vendidas a milhões e a lágrimas, por meio de superficiais, mas eficientes, apelos emocionais de TV e smartphones.

O povoado de Pacatuba elevou-se à vila em 8 de outubro de 1869, comemorando, na semana que passou, 152 anos – claro, essa é uma narrativa dos brancos, pois a região antes já era berço da população indígena, especialmente dos pitaguaris e potiguaras.

A instalação da Câmara Municipal viria em abril de 1873, sob a presidência de Henrique Gonçalves da Justa, o primeiro gestor do município, proprietário do sítio “Palmeiras”, e, certamente, nome dos mais importantes na história do desenvolvimento da cidade, sendo um de seus maiores benfeitores, daí emprestá-lo à sua principal praça – mesmo que popularmente a denominem “praça da Fonte” –, sendo comparável seus feitos ao do boticário Ferreira, o niteroiense de Fortaleza. 

O farmacêutico e escritor Rodolfo Teófilo, que embora seja baiano, tem parte de sua vida fincada na vida pacatubana. Em História da Seca faz referências ao trabalho benemérito do capitão Henrique Gonçalves da Justa, proprietário também de “dois sobrados vizinhos, o amarelo e o encarnado, ambos de belo estilo, sitos na praça que hoje ostenta seu nome venerando” (Manoel Albano Amora, em Pacatuba: geografia sentimental, 1972). Falaremos mais sobre esses sobrados, posteriormente.

Estive em Pacatuba, pela primeira vez, há alguns anos. Na época, encantado por ela, pesquisava Juvenal Galeno, decerto um dos autores mais fundamentais da historiografia da literatura cearense. Galeno nasceu em Fortaleza, em 1836, mas logo seus pais o trouxeram ao sítio Boa Vista, no alto da serra, onde ainda hoje se encontra um sobradão atípico, e ali viveria até 1887, aos 51 anos, quando passaria a residir em Fortaleza, apenas por conta da educação dos filhos. O tal sobradão tem estranha arquitetura, construído sobre rochedos e curiosamente denominado pelos pacatubanos de “casa da baronesa”, em referência não ao pai, mas à mãe de Galeno, Maria do Carmo Teófilo e Silva, tia de Rodolfo Teófilo, aqui já citado. O pai de Galeno, José Antônio da Costa e Silva, filho de Albano da Costa dos Anjos, rico produtor de algodão e proprietário de extensos terrenos na serra. José da Costa é considerado o pioneiro na comercialização do café no estado, sendo seguido por outros membros da sua família, nomes até hoje lembrados pelos historiadores, seja pela cultura cafeeira, pelo envolvimento político ou pela participação na Confederação do Equador.


Sobrado da família de Galeno no sítio Boa Vista (foto: Raymundo Netto)

                              

Diante da importância da família do capitão José Costa, por Pacatuba, e no sobrado da família, passaram alguns conhecidos personagens históricos, entre eles, os membros da Comissão Científica Exploradora (1859), criada pelo então imperador d. Pedro II, composta por Freire Alemão, Guilherme de Capanema, Gonçalves Dias, entre outros. Gonçalves Dias, já renomado por sua poesia em seus 36 anos, se hospedou na casa grande do sítio Boa Vista, tornando-se amigo de Juvenal Galeno, na época, com 23 anos, recém-chegado do Rio de Janeiro, de onde trouxe a edição de seu livro de estreia, marco do Romantismo cearense, Prelúdios Poéticos.



Juvenal Galeno, aos 23 anos, em Prelúdios Poéticos

 

(Continua daqui a 15 dias)