Crônicas sobre o Talento Cearense
Antonio Candido tem um ensaio elucidativo sobre a
crônica, no qual afirma que, filha do jornal, comunicativa por pendor, a
crônica consegue, com humor, com uma linguagem natural, espontânea, praticamente
“conversar com o leitor”. A crônica é leve e, na sua simplicidade, ajuda a
dimensionar os temas a que o cronista se dedica. Na mão do cronista, o assunto
grave, sisudo, fica ao alcance de todos – enfim, as coisas complicadas da vida
descem de seu cume, ficam “ao rés do chão”.
A crônica, que poderia ser descartável como o jornal
que a envelopa, ganha sentido de permanência quando transposta para o livro.
E se fazem permanentes, têm força de grande
literatura, as crônicas do cearense Raymundo Netto enfeixadas no livro Crônicas absurdas de segunda, que traz
um prefácio saboroso e esclarecedor de Ana Miranda e uma introdução do
historiador da literatura cearense Sânzio de Azevedo.
Retiro do prefácio de Ana Miranda dois trechos que
definem bem a crônica de Raymundo Netto. No primeiro, a autora de Boca do inferno alerta:
“O
texto de Netto é descansado, sonhador, ambulante e dialogado, nunca em
silêncio. Nunca solitário. Não se importa com o realismo e mesmo quando é
realista carrega a fantasia da memória.”
Adiante, Ana Miranda anota:
“O
seu narrador me faz lembrar um senhor de chapéu coco e fraque, muito elegante,
cortês. Entusiasmado e fervoroso, vaga pelas ruas a olhar tudo e conversar com
quem aparece ali. Gosta de conversa. Um narrador carregado de sentimentos, uma
afetividade à flor da pele, e um pouquinho de malícia. Fala num tom de certo
gracejo inocente, aproveitando todos os momentos para chistes e improvisos.”
O livro é uma seleção de crônicas que Raymundo Netto
publicou no jornal O POVO, de 2007 a
2010. Há no livro uma unidade, uma estrutura eficiente, que decorre dos
seguintes elementos:
·
emprego constante de intertextualidade (aproveitamento,
através da paráfrase, do pastiche ou mesmo da paródia reverencial, de trechos
de obras de autores do passado e do presente);
·
utilização do fantástico nos enredos;
·
telurismo
(o Ceará – os seus escritores, mortos e vivos – é o grande protagonista das
crônicas);
·
didatismo
(para
cada crônica, há uma nota biográfica sobre o personagem-tema – o que contribui
para tornar o livro também um consistente manual sobre a literatura cearense).
Como a crônica de Raymundo Netto, como
bem disse Ana Miranda, traz um narrador que “gosta de conversa” (algo análogo
ao que formulou Antonio Candido, ou seja, que o cronista enceta uma “conversa
com o leitor”), indico aqui as conversas
que mais me chamaram a atenção no livro: a com a estátua de Rachel de Queiroz
(“A moça do Zepelim prateado”), de caráter metalinguístico, em que é discutido
o fazer do cronista; a que trata de uma “mania” do também cronista Pedro
Salgueiro (“A dança das cadeiras”), que, no bar, numa roda de amigos, “é sempre
o último a se levantar para ir embora”, evitando assim a “falação” dos outros;
a com o poeta Quintino Cunha (“Molequintino”), excelente, exemplo do emprego
eficaz do humor na crônica; a com o contista e cronista Airton Monte (“Um monte
de barata”), que aparece uma noite metamorfoseado de barata; a com o grande
contista Moreira Campos (“A casa vazia”), que chega em seu fusquinha verde no
estacionamento de um shopping – a crônica permite uma boa reflexão sobre
patrimônio e memória; a com o “poeta maldito” José Alcides Pinto (“A peleja de
Dom Zé Alcides e o Dragão de Sobral”), texto com preciosos elementos
fantásticos.
São ainda personagens-temas das
crônicas, entre outros, o romancista José de Alencar, o dicionarista Raimundo
de Menezes, o contista e romancista Eduardo Campos, o contista Jorge Pieiro, o
cronista Milton Dias, o poeta Francisco Carvalho, a romancista Ana Miranda, o
pesquisador, poeta e cronista Audifax Rios, o poeta popular Mário Gomes, o
jurista, escritor e crítico Clóvis Beviláqua, o poeta, jornalista e orador
Demócrito Rocha, o romancista Antonio Sales, a romancista Socorro Acioli, o
poeta Horácio Dídimo, o cronista Lustosa da Costa e o romancista e contista
Nilto Maciel. Cearenses notáveis.
São muitos os exemplos de crônicas bem
compostas no livro de Raymundo Netto. Se não comento todas aqui, é para não
apagar a curiosidade do leitor.
Crônicas
absurdas de segunda é um livro precioso. Um livro para ser
adotado em escolas, como forma de divulgar o talento da gente do Ceará.
Escritor
e crítico. Doutor em Letras pela UNICAMP e professor de Literatura da
Universidade Federal da Paraíba. Organizador do livro O Clarim e a
Oração: cem anos de Os Sertões (Geração Editorial, 2002). Como
pesquisador, fez os textos da antologia Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do
Século, organizado por José Nêumanne Pinto (Geração Editorial, 2001). Autor de
diversos livros de contos, como O Caçador (1997), O
Perfume de Roberta(2010), Rita no Pomar (2009) e O
Professor de Piano (2011) – os dois últimos foram finalistas do Prêmio
São Paulo de Literatura. Organizador das antologias Contos Cruéis (Geração
Editorial, 2006), Quartas Histórias (Garamond, 2006) e Capitu
Mandou Flores (Geração Editorial, 2008). Escreve para os suplementos Rascunho (Curitiba)
e Correio das Artes (João Pessoa). A Novo Século acaba de
lançar seus Contos Reunidos, mais um
sucesso desse autor.
Serviço:
Crônicas
Absurdas de Segunda, de
Raymundo Netto
Apresentação: Ana Miranda
Prefácio: Sânzio de Azevedo
Posfácio: Pedro Salgueiro
Ilustrações (capa e miolo): Valber Benevides
Det: Capa dura | 231 páginas | colorido | Formato: 15,5 x 21,5cm
Investimento: R$ 30,00
Compra
On-Line:
livrariadummar.com.br
Contato com o autor: raymundo.netto@gmail.com